Luís Francisco Carvalho Filho

Advogado criminal, é autor de "Newton" e "Nada mais foi dito nem perguntado"

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Luís Francisco Carvalho Filho

Código Penal das tragédias

Sucessão de acidentes previsíveis gera aplicação arbitrária do direito

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É uma coleção espantosa de incêndios, explosões, desabamentos, desmoronamentos, inundações, contaminações para ser exibida no museu imaginário da destruição.

O capitalismo ainda é temerário, as cautelas não são adotadas, o poder público tolera, a lei é ineficaz e os desastres se sucedem.

A punição criminal depende da responsabilidade subjetiva. O Código Penal prevê crimes dolosos e culposos. Há dolo quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. Há culpa quando deu causa ao resultado por imprudência (ato perigoso), negligência (falta de precaução) e imperícia (falta de aptidão técnica).

A pena do crime doloso é mais severa, ainda que o resultado seja semelhante. É assim em qualquer parte (civilizada) do planeta. A conduta de alguém que dorme ao volante e dá causa à colisão que provoca a morte do irmão não se compara, em gravidade moral, à conduta da pessoa que, interessada na herança do pai, contrata o assassinato do irmão.

Mas a distinção entre dolo e culpa nem sempre é simples, automática. O espaço desta coluna é insuficiente para explicar o leque de teorias estabelecendo fronteiras entre dolo eventual e culpa consciente ou o ziguezague da jurisprudência nos casos rumorosos.

Talvez a maior tragédia da minha geração (se é que elas devem ser hierarquizadas pela quantidade de óbitos) tenha sido o incêndio em Niterói (1961) do Gran Circo Norte-Americano, com 503 mortes, a maioria de crianças. Crime doloso: o ex-funcionário ateou fogo na lona por vingança. Condenado a 16 anos de reclusão, fugiria da penitenciária e seria encontrado morto com 13 tiros no corpo. Apesar do ilusionismo da marca, o circo era brasileiro, não tinha rotas de fuga e o proprietário nem foi processado.

Normalmente, tragédias não são intencionais. Resultam de omissão, descaso, barbeiragem técnica ou da imprevisibilidade do que é previsível. A expectativa é de punição severa, mas quando se folheia o Código Penal há uma aparente desproporção entre fato e consequência, surgindo espaço para a aplicação arbitrária do direito.

A legislação prevê entre os crimes contra a "incolumidade pública" os de perigo comum, dolosos ou culposos, qualificados (aumento de pena) pelo resultado concreto --lesão corporal e morte.

No caso de inundação, explosão ou incêndio dolosos, a pena é de três a seis anos de reclusão, aplicada em dobro se há morte de alguém. Na modalidade culposa, é de seis meses a dois anos de prisão: com morte, vale a pena do homicídio culposo (um a três anos) acrescida de um terço. Somam-se as sanções específicas de eventuais delitos ambientais, mas o número de mortos não faz crescer o tempo de cadeia. Justa ou injusta, esta é a equação jurídica em vigor desde 1940.

O Ministério Público, que muito pouco faz em matéria de prevenção, costuma aparecer depois das tragédias acontecidas como profeta leviano da justiça impossível. Formula acusações por homicídios dolosos qualificados quando não existiu ação deliberada de matar. Oferece à sociedade e aos familiares das vítimas algo que não será entregue do ponto de vista condenatório. Cedo ou tarde, os tribunais corrigem o abuso do poder.

A demagogia judicial faz parte do ciclo insuperável das catástrofes brasileiras. E tudo se repete: indiferença, atrasos, destruição, óbitos, bombeiros heroicos, lamentos tardios, oportunismo acusatório, frustração, sentimento de impunidade.

lfcarvalhofilho@uol.com.br

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