Luís Francisco Carvalho Filho

Advogado criminal, é autor de "Newton" e "Nada mais foi dito nem perguntado"

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Descrição de chapéu Folhajus machismo

Inquisidores de quarteirão

Tribunal assume função eclesiástica e joga a Constituição na lata do lixo

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A Segunda Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo proibiu a entidade “Católicas pelo direito de decidir” de usar a expressão “Católicas” em seu nome.

A decisão judicial (com mais de 60 laudas) pode ser reformada pelas instâncias superiores, mas é um pequeno escândalo político —outro retrato constrangedor de um país que se desmancha diante de nossos olhos.

Por defender a legalização do aborto, a ONG fundada em 1993 e presente em diversos países, deve “adequar” seus estatutos sociais, sob pena de multa diária de R$ 1.000.

Não se trata de um triunfo conservador legítimo. É abuso de poder. A liberdade de expressão e o direito de se associar são jogados na lata do lixo.

É como se o Poder Judiciário tivesse legitimidade de impor à pessoa (jurídica ou física, não importa) um mandamento religioso: Você não pode se declarar católico se você é a favor do aborto. Como assim? Você pode usar qualquer outra palavra (veja como sou liberal, desde que você não viole “direito de terceiros”, evidentemente), mas você não pode tornar pública a sua crença.

Militantes ligadas a grupos de defesa dos direitos das mulheres fazem protesto em Brasília pelo direito ao aborto legal - Pedro Ladeira-20.ago/Folhapress

O tribunal desenvolve um ensaio perigoso de tolerância fake no momento de sentenciar: Você pode dizer que é mulher, que é feminista, mas você não pode dizer que é também católica.

Não é relevante investigar o rigor teológico da entidade atingida pela decisão judicial: o gesto é autoritário. Decisão tomada por homens sobre o jeito de mulheres se definirem, o gesto é também essencialmente machista.

O Tribunal de Justiça fala em “moral”, “bons costumes”, “ordem pública”, “boa-fé”, “transparência” (termos mais adequados para, por exemplo, tratar do auxílio-moradia) quando declara a “notória ilicitude” do uso da expressão “católicas” por entidade que, por defender o direito da mulher interromper a gestação (ainda que nos casos já previstos no Código Penal, como o estupro), “combatem” dogmas católicos.

O autor do pedido da esdrúxula intervenção judicial é o “Centro Dom Bosco”, entidade carola e arcaica, “defensora da fé”, formada por “soldados de Cristo”, inimiga declarada do Supremo Tribunal Federal e de pautas progressistas concebidas para destruir as famílias e a sacralidade da vida humana. No ano passado tentou obter a censura judicial do episódio de Natal do canal de humor Porta dos Fundos, construído em torno de um Jesus homossexual.

Ao acolher esta litigância de má-fé (no sentido religioso do termo), contrária à vigência plena das garantias asseguradas pela Constituição de 1988, os juízes agem como ridículos e extemporâneos inquisidores de quarteirão.

A Justiça de São Paulo, o mais rico e populoso estado da federação, nos remete para o século 19, quando a religião era matéria de Império e de Estado, sendo inaceitável negar dogmas da religião católica, zombar dos seus santos ou formular doutrinas para “destruir as verdades fundamentais da existência de Deus e da imortalidade da alma”.

Além de usurparem uma suposta autoridade eclesiástica que a magistratura não lhes confere (a associação de pessoas católicas e favoráveis à tese do aborto seria contra o Direito Canônico), os desembargadores se arvoram em senhores do bem e do mal: não interessa “a quem quer que seja” a existência de grupo com nome que não corresponda a sua autêntica finalidade.

É mais um componente espantoso da distopia errante, obscurantista e mulambenta que o governo Bolsonaro faz emergir.

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