Machismo e arrogância são elementos estruturais da Justiça brasileira. A Lei nº 14.245/21, denominada Mariana Ferrer, quer impedir, em ambiente judicial, a humilhação de vítimas, particularmente de crimes sexuais.
Agora, personagens do processo devem zelar, em audiências, pela integridade física e psicológica da vítima. O texto proíbe "manifestações sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos objeto de apuração nos autos" e a "utilização de linguagem, de informações ou de material que ofendam a dignidade da vítima ou de testemunhas".
A humilhação de Mariana Ferrer pelo advogado do réu acusado de estupro, em Santa Catarina, inspirou o projeto da deputada Lídice da Mata (PSB-BA), concebido e votado durante a pandemia.
O mundo dos tribunais é invariavelmente hostil. Quando cuidam de pequenas e grandes tragédias criminais, traumatizam quem nelas se envolve, mas em um ambiente judicial saudável, não existiria espaço para maus-tratos e abuso de poder: vítimas e testemunhas não precisam, em tese, de lei especial para serem respeitadas.
Aliás, réus (culpados ou inocentes) não merecem também ser humilhados e ofendidos. O artigo 1º da Constituição de 88 declara que um dos fundamentos da República é justamente a dignidade da pessoa humana. Sem exceção.
O diagnóstico da eficácia da Lei Mariana Ferrer (se os seus efeitos serão profiláticos ou meramente simbólicos; se será instrumento de controvérsias e embates judiciais, apesar de ignorada em comarcas mais provincianas; se o Supremo vai aferir sua conformidade com a Constituição e modular sua amplitude) depende de alguns anos de vigência prática.
A proibição de "manifestações sobre circunstâncias ou elementos alheios aos fatos" é o ponto nevrálgico do regime de audiências que a nova lei tenta estabelecer, podendo gerar reclamações de nulidade de sentenças, inclusive em prejuízo do interesse das vítimas.
A conjunção lógica dos princípios da busca da verdade real, da presunção de inocência, do direito de defesa e da paridade de armas sugere ser ilegítima, no julgamento de conduta criminosa, a censura de informações referentes a qualquer pessoa envolvida no processo –juiz, promotor, testemunha, advogado, vítima, réu.
Organizações de Direitos Humanos apostam em protocolos baseados na ética e na ciência, no desenvolvimento de recursos técnicos e mecanismos de controle e treinamento de operadores envolvidos em instâncias de inquirição e inteligência, para melhoria de cenário tão agressivo.
Exemplo deste esforço é o seminário online para lançar a versão em português do documento "Princípios sobre entrevistas eficazes para investigação e coleta de informações", formatado pelo núcleo de combate à tortura do Washington College of Law.
Do mesmo modo que o registro em vídeo e áudio das abordagens da PM a "suspeitos" em São Paulo, a partir de câmeras instaladas nos uniformes dos soldados, reduz a letalidade policial, a filmagem de audiências, além de revelar a nulidade da prova contaminada, inibe operadores da humilhação e permite punição de excessos e omissões.
O Supremo já declarou ser inconstitucional a tese da legítima defesa da honra no tribunal do júri. Direito de defesa não comporta estratégia de humilhação e ofensa.
Mas não se deve esquecer que arrogância e machismo estão entranhados no sistema judicial. Às vezes, um simples olhar ameaça mais que a própria grosseria.
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