Luiz Horta

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Luiz Horta

Pizzas de bairro guardam virtudes memoráveis

Receitas caseiras têm personalidade e sabores irreproduzíveis

​A memória é uma truqueira, vive misturando coisas na nossa cabeça. Ela é nosso saci-pererê mental, pregando peças. De repente, ela me trouxe uma cena, ocorrida há mais de dez anos: fui à casa do Hamilton Mello (o Mellão da mítica pizzaria I Vitelloni e da atual Trattoria Mellão) aprender como incrementar (a história é do tempo em que se usava esta palavra) o forno do fogão doméstico, para transformá-lo num quase profissional de pizza. A coisa envolvia pequenos truques, fáceis para qualquer um, mas um deles era comprar uma pedra sob medida, numa marmoraria da rodovia Raposo Tavares.

Como não sei dirigir, não tenho carro e nunca iria mesmo adquirir a tal peça, acabamos na sala, enquanto as pizzas assavam, conversando sobre um assunto que, descobrimos, nos encantava (além de comida e de bebida): o conceito de livre arbítrio na obra de Santo Agostinho. Mellão fez um molho de tomates delicioso, cuja receita não sei (esta eu repetiria, era fácil e útil), e comemos as pizzas, que ficaram ótimas.

Pizza margherita da Carlitos, na Vila Mariana
Pizza margherita da Carlitos, na Vila Mariana - Divulgação

A lembrança me deu vontade de comer pizza, das de bairro, caseiras, simplonas. Fiquei percorrendo os nomes criativos das pizzarias próximas (confesso uma queda por péssimos trocadilhos em nomes de restaurantes, mas não citarei nenhum, porque tenho medo de processos). Descobri que a Carlitos mudou de lugar, mas continua na região. Pronto, resolvido.

Pizza perfeita (e São Paulo pode se orgulhar desta arte) existe cada vez mais.

Mas tem aquele dia que você quer a pequena imperfeição. Como a da tal pizza que eu teria feito se seguisse as dicas do Mellão. Não me entenda mal, a pizza caseira tem um tropeço, uma mania, um sabor de algo que não busca um padrão. Não é defeito, é sua virtude de personalidade e continuidade.

Ela é de antes, é pré-escolas de gastronomia e mestrado em mozarela. A Carlitos é assim, consegue um gosto local, irreproduzível, de um mundo mais ingênuo, em que pizza era pizza (não estou lamentando 
o mundo perdido, mas um dia bate a vontade de achar um gosto antigo nas coisas). Quando criança, gostava de uma pizzaria chamada Vesúvio, com pizza provavelmente feita de presunto fatiado no boteco 
e o queijo mais barato. Mas era boa.

Se estou sozinho, aproveito e caio no meu pecadilho, peço pizza de aliche, acho que sou o último comedor de aliche da cidade. Tente pedir, em grupo, pizza com aliche, e vai entender o meu drama.

 

Rótulos da semana

Um tinto estranhíssimo

O primeiro vinho natural que tomei foi num restaurante chamado Mestizo, em Santiago, no Chile, sugestão do garçom. O rótulo parecia cartaz de luta livre mexicana, coloridão, e topei por isso. O vinho era um moscatel turvo e pesado (provavelmente, agora que sei, uma experiência de vinho âmbar pioneira). Pedi outra garrafa do mesmo produtor, um tinto estranhíssimo. Detestei os dois, adorei os dois. Fiquei com aquilo na cabeça, o nome do cara era Louis-Antoine Luyt.

Soube bem depois, quando importaram seus ótimos Clos Ouvert, que era um francês que tinha decidido fazer vinhos radicais no Chile. No ano passado, bebi alguns vinhos dele no México, onde faz sangiovese e outras coisas sob o nome de “Bichi”. São sempre difíceis de encontrar e ele, impossível. Já mandei email em espanhol, francês, recados por amigos comuns. Nunca respondeu.

No mês passado, em Santiago, procurei garrafas para trazer, nada, não há. Finalmente, na feira Naturebas, eis que vejo quatro rótulos de Monsieur Luyt, agora importados pela Enoteca SaintVinSaint. Comprei um de cada, continuam estranhos, mas deliciosos, gosto se educa, e eu aprendi a me deliciar com ele (alguns rótulos ainda têm a cara daqueles de cartaz lambe-lambe de luta livre, que acho lindos). O Gordo Blanco deve ser o moscatel da minha iniciação.

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