Luiz Horta

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Luiz Horta

A polêmica das alheiras portuguesas: levam carne de porco ou não?

Receita foi inventada no século 15 por judeus recém-convertidos vigiados pela Inquisição

Foi praticamente um conto de Eça de Queiroz, três pessoas que gostam de falar de comida (e comer, por consequência) conversando largadamente nas poltronas, altas horas da noite.

Então, não lembro bem como, apareceu a palavra alheira. 

 

A receita leva carne de porco ou não? Virou verdadeiro debate. Uma das pessoas, que tinha estado em Lamego e em Mirandela, onde estão as mais autênticas alheiras, segundo os portugueses, negava o porco com veemência. 

Outra, também: “é de pão”, dizia. Este acaciano colunista e mais uma quarta presente, que até então não estava na conversa, defendiam com certeza total a presença porcina no embutido delicioso.

Era tarde demais para ligar para algum restaurante e tirar a teima —e eu queria as alheiras com quiabos e picles de cenoura feitas por Vitor Sobral, chef da Tasca, Taberna e Padaria da Esquina.

Mas estávamos na casa de Nina Horta, onde todos os livros estão disponíveis sobre qualquer coisa de gastronomia, mesmo que escondidos num socavão da escada. 

Com custo me lembrei da maior autoridade, na minha opinião, em cozinha portuguesa: Maria de Lourdes Modesto. 

Fomos ao livro, escrito naquela prosa lusitana tão gostosa, que começava com “prende-se o lume”, essas palavras que não usamos.

Lá na lista de ingredientes da alheira, estava ela, a carne de porco em cubinhos. Se fosse mesmo um conto de Eça, alguém daria uma explicação óbvia ou haveria uma cena tragicômica qualquer.

Ou daria umas tossidinhas de tísico e sairia de cena. Como não era, e nem havia solução naquele momento, voltamos à ocupação de combinar goiabada mole com vinhos doces e deixamos para lá.

No dia seguinte, as luzes do dia dissiparam as dúvidas noturnas. Primeiro, fui, por indicação da própria amiga que esteve em Lamego e Mirandela, à Casa Portuguesa, em Pinheiros, que não conhecia.

É um lugar muito simpático, uma mistura de venda com restaurante caseiro. Lá, comi ótima alheira, preparada com porco.

Isto deu vitória ao meu grupo na discussão? Não, busquei os livrões de referência e neles os dois lados estavam certos.

A alheira (ou algo parecido) teria sido inventada lá pelo final do século 15, como forma de os judeus recém-convertidos, vigiados pela Inquisição, poderem exibir que também curavam seus embutidos e os comiam. 

Com isso, afastavam a suspeita de continuarem sua prática religiosa disfarçadamente. Ou seja, comiam como todo mundo, só que os faziam de pão, ovos, aves e sem porco.

Lembro de ter comido coisa parecida em Barcelona, uma linguiça de ovos que se consome no período da Quaresma, para não comer carne. Na Casa Portuguesa, o bacalhau também vale a pena —e não tem polêmica.

Casa Portuguesa. r. Cunha Gago, 656, Pinheiros, tel. 3819-1987. De seg. a sáb., das 11h30 às 15h30

 

O bacalhau e os laranjas

A querela da alheira me fez comer bacalhau com um vinho laranja, o do Vasco Croft —o produtor Gravner prefere chamar de âmbar esses vinhos em que as cascas das uvas brancas permanecem longamente em contato com o mosto.

Acabei vendo que esta combinação soluciona uma discussão antiga: bacalhau com tinto ou branco? Como os vinhos laranja não são nada baratos, eu ainda recomendo brancos barricados.

Eles são aqueles em que a presença do carvalho se nota, pois acho que os taninos de muitos tintos incomodam o gosto peixoso do bacalhau. Mas, se tiver oportunidade de provar um laranja com bacalhau, funciona bem.
 

Desafio goiabada

Nem tudo precisa ser combinado com vinho, repito. Mas tinha abertas garrafas de vinhos 
doces e uma lata de belíssima goiabada cascão de Ponte Nova, Minas Gerais, que deveria ser 
declarada apelação de origem controlada goiabada, pela perfeição.

Foi irresistível o desafio. Goiabada é doce que, por costume, se come com queijo. Um vinho doce com toque mineral, quase salino, foi a melhor resposta, como opinou uma participante.

O vinho, um Sauternes, fez papel do queijo. Preciso, agora, provar goiabada com xerez amontillado. Tudo é desculpa para brincar.

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