Ao abrir a página do coletivo feminista NüVoices no WeChat, maior rede social chinesa, uma mensagem alerta que o conteúdo está suspenso.
O grupo de cerca de 400 escritoras, artistas e jornalistas chinesas ou estrangeiras vivendo na China promove discussões sobre gênero, mas não protestos.
O ativismo feminino é visto como subversivo e é alvo de censura. Mesmo assim, uma onda de denúncias online de assédio sexual nas universidades levou o governo chinês a adotar novas medidas.
No ano passado, com o #MeToo em ebulição na Coreia do Sul e já provocando os primeiros reflexos na China, encontrei em Hong Kong Wei Tingting, 31, no lançamento de um relatório sobre assédio sexual dentro das redações do país.
Tingting é uma das “Cinco Feministas” presas em 2015 por planejar uma campanha contra o assédio no transporte público.
A militante se tornou diretora do Centro de Educação de Gênero e Sexualidade de Cantão, a terceira maior cidade da China. A pesquisa que ela conduziu ao lado da jornalista e ativista Sophia Huang Xueqin, 31, mostra que mais de 80% das jornalistas ouvidas em 15 províncias chinesas já sofreram assédio.
Poucos meses depois do nosso encontro e da publicação do documento, o #Metoo chinês —que começou com o caso do professor Chen Xiaowu da Universidade —Beihang atingiu até estrelas da imprensa chinesa.
O comentarista político Zhang Wen e o apresentador mais famoso do país, Zhu Jun, do canal estatal CCTV, foram denunciados por assédio. Em dezembro, o centro que Tingting dirige foi fechado pelo governo.
Em 2016, a ativista esteve na Bahia para o Fórum da Associação para os Direitos da Mulher e o Desenvolvimento (AWID) e sabe que uma das principais bandeiras do movimento feminista na América Latina é a descriminalização do aborto, procedimento que é legal na China.
Para ela, o grande desafio das chinesas é a falta de mecanismos para prevenir e denunciar o assédio e a violência contra a mulher. O número de ONGs é pequeno, o espaço para debate também. Falta educação sexual nas escolas e em casa, sobram misoginia e tentativas de culpar a vítima.
Como as brasileiras, elas enfrentam salários desiguais e discriminação no trabalho, mesmo sendo a maioria dos formados no ensino superior e mais de 40% da força de trabalho.
Sophia criou a plataforma ATSH, um espaço para vítimas compartilharem suas histórias. Poucas mulheres conseguem quebrar o silêncio, mas as redes sociais abriram espaço para se fazer ouvir.
A nova geração de estudantes hiperconectadas fez as denúncias decolarem usando o homófono chinês "coelho de arroz" (米兔 ou "Mi Tu") para burlar a censura. No último ano, alunos de mais de 40 universidades publicaram cartas exigindo ações.
Governos e instituições tentam encobrir os casos, para evitar a repercussão negativa, em uma tentativa de proteger a reputação das universidades.
Recentemente, diversos escândalos sexuais envolvendo acadêmicos vieram à tona e terminaram em afastamentos, perda de cargos e títulos. O debate cresceu, levando até o tabloide estatal Global Times a afirmar que “assédio é muito comum nos campus chineses”.
Proteção
A mobilização fez o governo apresentar uma proposta de revisão do Código Civil para 2020 que traz a primeira definição nacional da China para assédio sexual.
Leis começaram a ser adotadas no mundo a partir dos anos 80, mas a primeira legislação chinesa nacional nesse sentido é de 2005, um ano antes da Lei Maria da Penha, no Brasil.
Hoje, o tema é coberto por vários estatutos nacionais e locais, sem uma lei única e abrangente.
Pequim, Xangai e também certas províncias definem o assédio como "ações contra uma mulher por meio de linguagem, palavras, imagens, informações eletrônicas ou ações corporais relacionadas a sexo ou contendo conteúdo sexual contra sua vontade."
A cidade de Shenzhen ampliou a definição para tipificar o assédio no trabalho.
Outra medida veio através do Ministério da Educação, que publicou diretrizes para que universidades penalizem professores que assediem sexualmente estudantes e colegas.
Além disso, quase uma dezena de órgãos incluindo ministérios e federações anunciaram que empregadores serão multados em até R$ 30 mil por anúncios de emprego discriminatórios e sexismo no trabalho.
Resta saber se o avanço no tratamento público da questão fará com que casos diminuam ou tenham consequências.
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