Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

A mulher adúltera

O povo adora apedrejar pecadoras e detesta quem as perdoa

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Talvez uma das passagens mais famosas do Evangelho seja aquela em que umas pessoas trazem uma mulher aos prantos, envergonhada, e a jogam aos pés de Jesus. Ela tinha sido pega transando com outro homem que não o seu marido. Um horror até hoje. Uma adúltera (que não tem nada a ver com Maria Madalena!). 

As pessoas que a levaram perguntaram a Jesus se ela não deveria ser morta por apedrejamento, como rezava a lei de Moisés. Era uma armadilha para testar se Jesus era fiel às leis de Israel ou se era algum tipo de herege.

É fácil imaginar que leis como essas visavam garantir a fidelidade da mulher e, com isso, a paternidade dos filhos. Esse negócio de sexo é coisa séria demais para deixarmos nas mãos dos idiotas de gênero.
Façamos um exercício literário bíblico. Na Bíblia, outro personagem muito famoso, que para os cristãos era ancestral de Jesus, o Rei Davi, passou por uma semelhante. Davi se apaixonou por Batsheva (Betsabá), mulher de um dos seus generais mais fiéis.

Davi, segundo a tradição, escreveu os Salmos. Homem de coração apaixonado, ambicioso, libidinoso, mas profundamente sincero, e Deus gosta dos corajosos, sinceros e humildes. Ele engravidou a mulher do general (logo, ela era uma adúltera) e armou uma situação para parecer que ela estava grávida do marido. 
Em seguida, armou outra para o general morrer na guerra que estava acontecendo ao norte do reino israelita. O militar morreu, mas a história não colou. Davi queria que sua amada escapasse do apedrejamento que “merecia” por lei. Mas não adiantou, o povo foi atrás. O povo adora apedrejar adúlteras e detesta quem as perdoa. O povo odeia o perdão.

Ilustração
Publicada nesta segunda-feira, 8 de abril de 2019 - Ricardo Cammarota/Folhapress

As pessoas clamaram pelo apedrejamento da adúltera às portas de Jerusalém, inclusive porque os homens santos diziam que a seca infame que Israel sofria àquela altura era castigo pelo adultério real. 
Davi se recusou a entregar sua amada e foi pedir a Deus, pessoalmente, na tenda onde ficava a Arca da Aliança, para que perdoasse Batsheva e o punisse, afinal Davi era o rei, enquanto ela era uma coitada que tinha de obedecê-lo —apesar de saber que ela também o amava e o desejava, portanto, também era responsável pelo pecado do adultério.

Sendo Davi ele mesmo um pecador por ter armado tudo que armou, deveria ser destruído pelas chamas do céu ao tocar a Torá, na qual só os puros poderiam encostar. 

Mas não. Deus o perdoa e faz chover sobre Israel. A sinceridade de Davi, reconhecendo que ele mesmo merecia morrer, e não ela, e o pedido para que ele fosse castigado, e não ela, faz Deus ficar comovido. 
O povo, impressionado, aprende ali que Deus é misericordioso e que a lei não esgota a relação entre nós e Ele. 

Davi se casa então com Batsheva, e deles nasce Salomão: o futuro rei sábio da Israel antiga, autor, segundo a tradição, dos livros de sabedoria israelita, entre eles o Cântico dos Cânticos, uma história de amor proibido.

Davi, na tradição judaica, é o bem-amado de Deus, o preferido entre os heróis do Antigo Testamento. Por quê? 

Quem somos nós pra saber o que se passa no coração de Deus, mas talvez Davi seja querido justamente porque sabe que não merece o perdão e não o barganha —no lugar disso, pede que ele salve a mulher amada.

Deus não resiste à sinceridade e ao amor verdadeiro, que pode custar a vida de quem ama. Por isso, o caminho mais reto para o coração divino é a verdade. A verdade comove o coração da divindade israelita.
Voltando a Jesus e à adúltera, a reposta dada pelo Cristo é famosa. Ele reconhece que a mulher pecou, e ela também, e que a lei é a lei. Mas pede que aquele que tiver o coração puro atire a primeira pedra.

Jesus, como Deus na história de Davi e Batsheva, comove-se com a dor da mulher humilhada e desafia os “puros” de coração a aplicar a lei. Ninguém atira a primeira pedra, porque não existem os puros de coração, pelo menos entre os que assim pensam de si mesmos.

Essa passagem é fundamental para uma época com tantos santos desfilando pelo mundo. A Bíblia nos ensina que a virtude não está onde parece se revelar, orgulhosa de si mesma (evidente contradição, não?). 
A virtude está no desespero de Davi diante do possível apedrejamento da mulher que ele desgraçou. A virtude está naquela adúltera desesperada pega em pecado evidente diante dos seus juízes. 

Enfim, a virtude está no pecador que sabe quem é. Por isso, uma das velhas e maiores máximas do mundo bíblico é: só os pecadores verão a Deus.

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