Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Mentira e autoestima

Motivos para preferir pets: duram e custam menos, amam mais facilmente

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Sabemos que Freud criou uma hermenêutica (uma forma de interpretação do mundo) que transformou as relações entre pais e filhos (e não só elas). Um dos impactos dessa nova forma de interpretar a história das pessoas foi fazer pais e mães (principalmente essas) sempre se perguntarem no que eles erraram, qual sua parcela de culpa ou responsabilidade na vida psicológica dos filhos. 

Na verdade, essa conta nunca fecha porque não se trata de engenharia aqui, mas de seres humanos, inexatos, imprecisos, ambivalentes. 

Um efeito colateral dessa hermenêutica é ter transformado as crianças e os jovens em grandes problemas insolúveis ou de manutenção contínua.

Longe de mim questionar a psicanálise. Mas, como tudo mais no mundo moderno, existem ambivalências em seus desdobramentos históricos. Penso aqui nos seus desdobramentos culturais de longo alcance. Sua cauda longa, digamos. Ou naquilo que o sociólogo Frank Furedi no seu “Therapy Culture” (cultura da terapia) de 2004 chama de “culto da vulnerabilidade”.

Ilustração
Ricardo Cammarota

Um desses desdobramentos é a contaminação radical da educação pelo discurso “psi”. A educação por si só é uma disciplina perdida em si mesma, vítima de modas, pautas de mídia, do mercado de ferramentas tecnológicas e ideologias as mais variadas. 

As escolas e universidades, paulatinamente, capitulam diante do imperativo da economia da autoestima, seja ela meramente psicológica, seja identitária. 

A recente obra “The Assault on American Excellence” (o ataque à excelência americana), de Anthony Kronman, ex-diretor da faculdade de direito de Yale, trata justamente dessa convergência entre políticas identitárias (e seu autoritarismo), e a destruição da vida acadêmica em favor de transformar a universidade em uma usina de autoestima.

Mas, no plano do “meramente” individual, assistir a como essa invasão se dá pode ser um show de semântica. 

Pais e terapeutas se apropriam do discurso da vulnerabilidade para, ao final do dia, como dizem os millennials, fazer seus filhos ou pacientes avançarem na escola ou universidade (nem todos os pais, nem todos os terapeutas, nem todas as escolas, claro, mas a maioria tende a capitular diante das pressões do mundo contemporâneo). 

A fala é mansa, as palavras adocicadas, o objetivo velado. As demais ciências humanas se aliam ao discurso da vulnerabilidade trazendo seu viés de combate à desigualdade social como justificativa maior para “acolher” os vulneráveis sociais, numa grande orgia em favor da autoestima. O resultado é um mundo de frouxos e melosos.

O fator marketing conta muito. Um dos traços do capitalismo avançado em que vivemos é a elevação da mentira a categoria de ferramenta de construção social da prosperidade. Todo mundo mente deslavadamente. Há uma “ciência da mentira” transformando o mundo num imenso parque temático de adultos ridículos.

Um aluno e seus pais são clientes, e, ao final do dia, o cliente sempre tem razão, portanto, a escola sempre será “parceira”.

Porque, inclusive, se não for, pode surgir o novo personagem desse “romance familiar” (termo do Freud), o advogado, o Ministério Público ou o juiz, e responsabilizar juridicamente a escola por alguma tragédia que envolva “seu cliente”.

Não acho que haja saída no horizonte, uma vez mantidas as condições materiais (pensando em chave materialista histórica) que geraram essa sociedade da mentira e da autoestima.

Para além da contaminação da escola, há uma nova modinha comportamental “psi”: depressão pós-parto dos pais (e não das mães, o que já era descrito). 

Sim. Há todo um novo mercado “psi” nascente: pais derretendo diante da responsabilidade que vem junto com o bebê. “Que medo!” Frouxos e melosos. 

Mais um motivo para preferir pets: duram menos, custam menos, amam mais facilmente. Sempre foi duro ser pai. Agora, é fofo ser medroso. 

Sim, claro, depressão não é brincadeira. Essa espécie humana de hoje não teria sobrevivido ao Alto Paleolítico. Os neandertais teriam nos transformado em seus pets. E nossas mulheres pré-históricas, mais sábias do que as de hoje, iriam se recusar a fazer sexo com esses frouxos e melosos.

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