Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé
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É possível ter esperança no mundo?

'Não concordam que somos todos responsáveis pela ausência de valores?'

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É possível ter esperança no mundo? Esse é um tema que me tem ocupado nos últimos tempos. Formas de autoajuda de esperança são uma indústria mau caráter. Do ponto de vista filosófico, o olhar trágico é o mais qualificado para falar da esperança, justamente porque nele a esperança não existe e, quando existe, é na forma da esperança de Pandora: uma maldição, no mínimo um erro causado pela desmedida humana de crer em si mesmo.

Afora esse nível mais filosófico, o dia a dia se faz fonte de desesperança: saturação de chatices por toda parte, polarização pentelha, opinionismo de pessoas de 12 anos que querem reger o mundo, boçalidade dos reacionários, desorientação política, a mentira como protocolo do conhecimento; enfim, motivo não falta para desesperança.

Ilustração com vários elementos sobrepostos em tons de azul e verde, a técnica utilizada é semelhante ao uso de lápis de cor. Há silhuetas de pessoas andando, escadas em diversas direções, janelas e formas geométricas. Em cima de tudo, há algumas linhas em branco.
Ricardo Cammarota/Folhapress

​Albert Camus (1913–1960) foi um autor trágico (sua filosofia do absurdo é uma filosofia trágica). Nos “Cadernos” de 1942 a 1951, Camus se pergunta: “Não concordam que somos todos responsáveis pela ausência de valores? E se nós, que viemos todos do nietzschianismo, do niilismo e do realismo histórico, anunciássemos publicamente que estávamos enganados; que há valores morais e que de agora em diante vamos fazer o que tem de ser feito para os estabelecer e os ilustrar. Não acham que isso podia ser o começo da esperança?”.

Essa pergunta de Camus rasga sua vida: é possível ter esperança no mundo? Essa não é para iniciantes. Na citação acima, Camus nos acusa (principalmente aqueles que podemos chamar de “cultos”) de sermos responsáveis pelo caos moral em que vivemos. Provavelmente, ainda mais hoje em dia, mergulhados no oba-oba das modas de comportamento, estamos bem longe dessa consciência de que fala Camus.

Sermos nietzschianos aqui significa acreditar que a moral seja uma criação dos “fracos”. A filosofia de Nietzsche é poderosa, mas existem mesmo esses “fortes” em direção aos quais deveríamos caminhar como projeto de vida pessoal? Sermos niilistas significa crer que não há valores, nem verdades, nem mentiras. Tudo é uma criação histórico-social e, portanto, pode ser posto abaixo a partir de qualquer intenção articulada.

Afirmar que tudo é narrativa (como afirmam historiadores, filósofos e psicólogos) é mais do que meio caminho andado para o niilismo. Acreditar no realismo histórico significa sermos marxistas e crermos na violência como parteira da história.

Em suma, tudo chique, sofisticado, erudito, ensinado nas escolas, nas universidades e descritos em artigos na imprensa, ou mesmo nos púlpitos das igrejas. Normalmente, usamos argumentos dessas três matrizes com “boas intenções”. Contra preconceitos, contra opressão de vítimas sociais.

O que percebe Camus, e muita gente até hoje não percebeu (ou, simplesmente, mente), é que todo esse “ensino relativista”, seja lá de que viés for, é produtor de niilismo, o que não significa dizer que o relativismo, nas suas diversas modalidades, não seja verdade.

E aqui reside o núcleo da tragédia moral percebida por Camus. Aliás, como reconhece o próprio historiador Tony Judt, Camus aqui encontra o filósofo britânico Isaiah Berlin (1909–1997): os valores podem entrar em choque uns com os outros, isto é, duas verdades podem entrar em conflito e não haver resposta conciliatória.

Eu arriscaria dizer que a linha divisória entre a infantilidade e a maturidade está aqui: nem sempre encontramos uma saída que não seja, em alguma medida, infeliz ou, no mínimo, apenas “mediana”.

A pergunta que nosso filósofo do absurdo faz é se não deveríamos assumir a responsabilidade por termos, durante décadas, gozado com a pura e simples destruição de todos os valores, da sala de aula à arte e aos debates inteligentes na mídia. Professores desfilam discursos demolindo todas as crenças, e os jovens, na sua estrutural ignorância, gozam junto com eles.

Em meio ao capitalismo selvagem em que vivemos, é possível tomar como possível essa proposta de Camus? Não sei. Seria ele ingênuo? Não creio. Assumir que somos sim culpados pelo niilismo moral seria um começo para a esperança. Feliz Ano-Novo.

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