Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

A coragem do intelecto é ser contra tudo pelo qual sua época é apaixonada

Ao contrário do que os superficiais pensam, o que lhes falta não é uma virtude específica, mas um vício

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Sim, o otimismo é a virtude cívica máxima de nossa época. Todos amam a todos e todos desejam um mundo melhor.

Uma nova forma de náusea, que não a do Sartre (1905-1980), acomete a consciência, aquela náusea mesma que para as almas superficiais se confunde com o pessimismo ou quaisquer outros sentimentos não "progressistas". Para mim, a definição máxima de "progressista" hoje é a função corporativa conhecida como "CHO", chief happiness officer —"chefe do departamento de felicidade"— da empresa.

Existem alguns pecados no otimismo. Um primeiro deles é sua irresistível vocação à superficialidade no trato com a realidade, com a decorrente tendência à mentira como método e ao engodo como manifesto "disruptivo".

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Publicada neste domingo, 31 de outubro - Ricardo Cammarota

Outro pecado do otimismo é ter sido abraçado pelos movimentos sociais dos séculos 19 e 20. Como dizia Tocqueville (1805-1859) no seu "Souvenirs" (ed. Gallimard, 1999), escrito ao longo dos dias da Revolução de 1848 em Paris, o mal do século 19 era a inquietação dos espíritos e a crença de que revoluções sociais fariam do mundo o que esses espíritos desejavam. As revoluções se foram, mas o marketing capturou tanto a inquietação dos espíritos quanto as suas expectativas e fez delas uma indústria dos espíritos inquietos em aceleração infinita.

Para o mercado, a censura à liberdade de expressão não é definida como proibição da emissão de conteúdos, mas sim como a obrigação de que os conteúdos remem a favor da maré do otimismo que faz de todos uns idiotas sorridentes.

Portanto, uma nova forma de liberdade de expressão surge, aquela que prima por não negociar com ninguém, com causa nenhuma, com patrocinador nenhum, com engajamento nenhum, com projeto social nenhum, e, principalmente, não negociar com o marketing existencial, este vendedor de bens imateriais de significado.

Entretanto, se engana quem supõe que o oposto dessa virtude cívica estúpida, conhecida como otimismo, seja o pessimismo. Claro que não compactuar com o pacto cívico ao redor do otimismo implica uma certa dose do espírito de Schopenhauer (1788-1860), o que leva muitos a se equivocarem quando encontram um "espírito livre", como dizia Nietzsche (1844-1900).

Proponho, como virtude oposta à virtude cívica contemporânea do otimismo, o vício da profundidade, não o gozo da desgraça, como pensam os incautos do intelecto.

E chamo atenção para a palavra vício neste contexto. Tomo emprestado aqui o brilhante ensaio de Elias Canetti (1905-1994) "Hermann Broch, Discurso pela Passagem do seu Quinquagésimo Aniversário, Viena 1936", que abre a coletânea "A Consciência das Palavras", publicada no Brasil pela Companhia das Letras, em 2011.

Nesse ensaio, poético como tudo que escreveu Canetti, o autor propõe três grandes traços de comportamento que devem compor a personalidade e a obra de um poeta. "Poeta", no ensaio, é uma profissão que se caracteriza por um conjunto de elementos comuns à função do escritor e do pensador público. A consciência das palavras passa por esses três grandes traços de comportamento.

O primeiro é a ideia de que a virtude máxima de um intelectual é o vício de olhar tudo a sua volta com a obsessão de vasculhar o mundo e suas sombras, para além do que ele gostaria de revelar —assim como um cão que é escravo do vício de seu focinho a farejar tudo o tempo todo, analogia do próprio Canetti.

Ao contrário do que os superficiais pensam, o que lhes falta não é uma virtude específica, mas um vício, aquele que impede os que o têm de não investigar o que pode aprofundar seus olhares sobre o mundo para além do bom comportamento. O contrário da virtude cívica do otimismo não é o pessimismo, mas o vício da profundidade. O conhecimento é uma forma de escravidão do intelecto a este vício.

O segundo traço é o fato de o intelectual ser uma presa do seu tempo. A tentativa de não o ser o torna cego e surdo. A terceira é a coragem de ser contra tudo pelo qual sua época é apaixonada. Os dois parecem em contradição, mas o que importa é essa mesma contradição: a harmonia não é a casa do pensamento.

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