Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Nada mais típico da razão do que reconhecer seus próprios limites

Por isso, filósofos, psicólogos e historiadores pesquisam o irracional como componente da nossa história moral

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Acreditar na razão com uma fé cega é um equívoco recente na história e pré-história da humanidade. Essa superstição instalou-se definitivamente no século das luzes, o século 18.

Essa constatação —de que a crença cega no racionalismo é um equívoco— não implica um culto à irracionalidade nem a negação do valor da razão, é apenas uma constatação da própria razão.
Como dizia o filósofo Blaise Pascal no século 17, "nada mais típico da razão do que reconhecer seus próprios limites".

Por isso mesmo, o que está fora do escopo da razão —o irracional— é um problema voltado para o pensamento racional e não para bobagens do senso comum.

Nada do emocionalismo barato que permeia o papo furado sobre empatia. Falar do irracional é uma atividade da razão, um esforço para identificar elementos na ação humana que são impactados por agentes estranhos à autonomia do pensamento racional.

A ilustração de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual, pincel fino com tinta nanquim, figurativa, em acabamento com contornos e sombras de tramas, com pinceladas em mesmo estilo, traço preciso e tremido. Colonizada digitalmente com cores chapadas: rosa de fundo e diversas imagens em tons de rosa pálido, roxo claro, beje e alguns tons de azul.  A arte, na horizontal, foi executada com formas em disposição não convencional, com vários elementos, dispostos de forma solta, sem descrever uma situação específica. Ao centro, maior, há uma cabeça, da sobrancelha para cima, com duas mãos sobre a testa.  Acima, um corte de um dorso feminino com peitos descobertos. Há uma perna e pé com asas, um rosto antigo feminino, de ponta cabeça, com um alo de anjo e, do outro lado, um meio rosto que se assemelha a uma figura de diabo, olhando a cabeça maior. Na base da ilustração, há uma trama de ondas de água, assim como no topo da ilustração. Há uma mão com um bastão, uma cabeça de uma figura grega e um braço segurando um tecido branco, acima da cabeça. A composição é livre, não sugere uma situação de um cenário ou contexto narrativo
Ricardo Cammarota

Por isso mesmo, muitos filósofos, psicólogos, historiadores, inclusive da literatura, pesquisam o irracional 
como componente da nossa história moral.

A vida é atravessada por elementos irracionais todo dia. Sonhos premonitórios —que assim pessoas os creem—, intuições, sensações físicas 
fortes, ideias fixas, radicalismos políticos, ódios, paixões enlouquecedoras —essas andam condenadas pela histeria ideológica—, enfim, muitos são os exemplos.

Mas, se você quer entender como se coloca o irracional sob uma lupa para ver como ele funciona —seu impacto, alcance, estrutura e dinâmica—, dou como exemplo os estudos de E.R. Dodds (1893-1979), um historiador irlandês da Grécia Antiga.

"The Greeks and the Irrational", publicado pela Beacon Press em2020 —sem tradução em português—, é exemplo magistral de como se identifica o irracional no comportamento e na cultura de um povo como o grego antigo, uma das maiores culturas que já caminhou sobre a Terra. Claro que a fonte histórica aqui são os textos de época dos vários autores gregos de então: dramaturgos, autores dos épicos, oradores, filósofos, historiadores, "loucos".

Um dos primeiros tópicos é a manifestação do que 
Dodds chamará de "intervenção psíquica". O caso de Agamemnon, rei dos gregos na guerra contra os troianos, servirá de paradigma.

Usando os relatos sobre seu conflito com o mítico guerreiro Aquiles na disputa pela amante escrava deste, que foi roubada por aquele, o historiador apontará vários momentos em que as ações do rei são referidas como causadas pelo "atê", palavra grega recorrente que, ainda que apresente significados secundários variados, sempre mantém o sentido primário de intervenção do sobrenatural —divino ou demoníaco— sobre o agente humano, roubando-lhe a autonomia do pensamento e das ações decorrentes.

Um outro fator investigado é a herança moral familiar ancestral, traço característico de inúmeras culturas antigas. O "miasma", ou a contaminação dos descendentes por alguém que cometeu algum pecado mortal no passado —sendo a "hybris" ou desmedida o pior de todos no universo grego antigo—, é outro exemplo recorrente na literatura grega antiga. A vítima do "miasma" terá sua vida, seus pensamentos, emoções e ações contaminados sem possibilidade de redenção senão o castigo.

Antígona, narrada por Sófocles (497-406) em peça homônima, é um exemplo máximo. Sua autonomia é atravessada pelo fato de ser filha de um útero incestuoso —sua mãe, Jocasta, era sua avó, e seu pai, Édipo, era seu meio-irmão por ser filho de Jocasta. Por isso ela se considera indigna de continuar vivendo. Via-se como uma mancha no mundo.

A bênção da loucura com dons proféticos. Sonhos com mortos que trazem informações essenciais para os 
vivos. Cachorros nos templos —até hoje na Grécia as ruínas dos templos têm "cães de guarda" cuidados pela população— que lambem feridas humanas e as curam.

Dominada por crenças no sobrenatural, nossa vida psicológica caminha por um estreito passo entre o medo, a ansiedade e a esperança.

A razão é apenas uma pequena parte dela, mas nem por isso menos importante. A alma irracional nos habita, às vezes como êxtase, às vezes como pesadelo.

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