Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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No trabalho, é grande chance de usar corpo como ferramenta de sedução

Série 'The Morning Show' traz elementos para a reflexão sobre a crise cultural americana e o puritanismo que fundou os EUA

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Os EUA são a maior lata de lixo cultural contemporânea. Quase tudo é "identity crap" e afins —"crap" aqui significa porcaria. A produção audiovisual americana atual é quase nula para não retardados. Aliás, a área é uma das que foi mais atingida pelas modas obsessivas identitárias.

O audiovisual, conhecido como um dos mercados mais violentos, competitivos e antiéticos —não é à toa todos os escândalos sexuais no ramo— agora, se travestiu de vestal dos bons costumes progressistas. Não poderia deixar de ser um dos maiores desfiles de hipocrisia do mundo público.

Universo que move bilhões de dólares, regado a muita disputa de ego, altíssima rotatividade de elenco —todo mundo fica velho muito rápido— e uma pressão devastadora por audiência e engajamento ("ratings"), o audiovisual faz a babilônia bíblica parecer o Éden.

A arte realizada pelo ilustrador Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual, guache sobre papel e com acabamento de cores semelhantes sobrepostas sobre o guache, com tubos de crayon. Cores predominantes: laranja, rosa, vinho e preto. Os traços são simples, as imagens não possuem volumes, mas são texturizadas, tal qual o fundo laranja/rosa, que são manchados. Na ilustração, horizontalizada, mostra, à esquerda, uma mão (traços simples, contornos texturizados em preto) segurando firme uma chave de fenda voltada para cima. E, à direita, no mesmo tamanho, há uma chave de fenda preta (posição de cima para baixo) localizada bem no meio de uma engrenagem vermelha. A imaginação, fica por conta do leitor.
Ricardo Cammarota

A série da Apple TV "The Morning Show" —primeira temporada, novembro 2019, segunda temporada, setembro de 2021— parte de um escândalo de assédio sexual que envolve um grande âncora do jornalismo americano interpretado por Steve Carell.

Estão no elenco também Jennifer Aniston, Reese Witherspoon e Billy Crudup. Ainda que caia em alguns clichês do identitarismo —sexo entre lésbicas é amor, entre heterossexuais é masculinidade tóxica—, a trama traz alguns elementos para a reflexão sobre a crise cultural americana em curso.

Quando olhamos de mais perto todo o desenvolvimento dessa tragédia da inteligência que acabou se constituindo a vida intelectual americana —com a participação direta de uma das maiores instâncias repressoras da inteligência contemporânea que são as universidades de riquinhos americanos— vemos suas raízes puritanas profundas.

O puritanismo que fundou os EUA retorna do reprimido, após a ridícula contracultura, para atormentar o espírito americano. A obsessão pelo "ambiente de trabalho sexualmente seguro", e suas comissões de RH ou compliance —que a série mostra de modo cirúrgico— investigando quem come quem, é uma grande fonte de paranoias afetivas e violência na hierarquia.

Mas vamos com calma. Sem dúvida o poder gera abuso em muitos casos. Isso é fato. E muitas mulheres e homens sofrem com isso. O problema é que ideologias políticas e procedimentos sumários de repressão e escrutínio dos afetos e sexo no ambiente de trabalho se movem como um elefante numa loja de cristais. A fúria puritana que alimenta esses processos se esconde sob a pele do cordeiro progressista.

Toda a cultura pós o "#MeToo", as pautas identitárias e o puritanismo jovem acabaram por se constituir, acima de tudo, em políticas corporativas que, por sua vez, elevaram o nível da violência no cotidiano do trabalho.

Todo o universo "progressista" se revelou apenas ser mais um nicho para as baixarias que caracterizam as relações humanas no mundo da produção capitalista. Um dos detalhes que marca a série é a evidente destruição das relações humanas que encontrou no discurso identitário um espaço para novas formas de violência na "gestão de pessoas".

A verdade é que o mundo do trabalho é erótico. O encontro de pessoas no cotidiano da produção, onde há sucessos, carreiras, ambições, manipulação de egos, afetos e corpos, é um território fértil para a oportunidade de sedução sexual e romântica.

Trabalhar no dia a dia com pessoas é grande chance de se apaixonar, de usar um corpo jovem e belo como ferramenta de sedução nas políticas pessoais de carreira, de negociar boquetes em troca de promoções. A própria economia da autoestima entra como combustível nesse processo de erotização da cadeia produtiva.

Enfim, o sexo no meio do expediente não acabou, ele apenas se transformou num enorme mercado jurídico e em campanhas de marketing de construção ou destruição de carreiras.

Uma das razões para a persistência do interesse pelo sexo no meio do expediente —para além do fato que somos uma espécie sexuada— é o gosto infinito e atávico que o público tem por saber da sacanagem na vida das celebridades. Saber quem come quem move o combate cotidiano contra o tédio.

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