Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé
Descrição de chapéu Eleições 2022

Vale mentir numa eleição? É claro que sim, vence quem ganha mais votos

A melhor forma de entender a democracia seria vê-la no seu procedimento de atribuir poder

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O que é democracia? Pergunta chata e constante. Toda hora alguém grita que a democracia está a acabar. Reclama-se, mas o fato é que não conhecemos outro regime melhor.

Fala-se de fake news, de polarização. Outro traço da democracia é que nela a verdade morre rápido, assim como na guerra. Com as redes sociais, então, a democracia digitalizada tem uma vocação maior ainda para a mentira. Não vai melhorar.

O cientista político americano Samuel Huntington (1927-2008) gostava de usar uma definição procedimental de democracia —e não de princípio.

A ilustração de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual, com pincel e nanquim sobre papel cor craft e, depois, colonizada digitalmente, transparecendo as cores azul e vermelho.  Traços e formas predominantemente retos e borrados, predominância de cores pretas chapadas. Não sugere uma narrativa clara específica. Ao centro da imagem, uma figura de uma cabeça  muito estilizada, dentro de um cubro desenhado em traços, de boca bem aberta por onde sai uma escada, toda tortuosa, e desce, a fundo, para um buraco quadrado preto. No entorno, sombras de diversas portas semi-abertas em meio a mistura de sombras e cores - vermelho e azul. Trata-se de uma ilustração de acabamento simples, tons fortes e escuros, traços retos. Fundo papel craft recortado a mão.
Ilustração de Ricardo Cammarota para a coluna de Luiz Felipe Pondé da edição de 18 de julho de 2022 - Ricardo Cammarota

Inspirado no economista Joseph Schumpeter (1883-1950), Huntington achava que em vez de dizer coisas como "a democracia visa o bem público" (seu propósito) ou "a democracia é o regime em que o povo é o dono da soberania" (seu princípio político), a melhor forma de entender o que é em si esse modelo seria vê-lo no seu procedimento de atribuir poder —daí a ideia de definição procedimental. Mas o que é isso?

A política é o território da violência. Qual o procedimento que a democracia propõe para determinar quem tem o monopólio legítimo da violência política, ou seja, quem tem o direito de mandar? Como se decide quem manda? Identificar como ocorre essa decisão é identificar o procedimento.

Vamos lá. A democracia é um regime segundo o qual a sociedade cria instituições que organizam uma certa competição por votos, que é entendida como legítima. Quem vence essa corrida manda.

É claro que o regime é fruto de muitos processos não intencionais ao longo da história. Hoje olhamos e avaliamos que o que os atenienses fizeram no século 5º a.C. é o berço da democracia, que a Revolução Gloriosa inglesa de 1688 é o berço da democracia ou que a Revolução Americana de 1776 é o berço da democracia.

Mas a verdade é que aqueles caras estavam muito longe de serem democráticos no que hoje entendemos por democracia liberal. Foi quase sem querer.

A vantagem da definição procedimental é que ela introduz o caráter de competição por votos de forma evidente no debate —fator que muita gente, às vezes, esquece nos seus delírios virtuosos. Mas é claro que os políticos e os partidos nunca deixam isso de lado.

Quem ganha a competição, denominada de eleição, leva. Você não pode matar o concorrente, é óbvio, mas se alguém fizer isso, o acontecimento pode impactar o resultado —seja a seu favor, seja contra você. Mas continuo com o princípio procedimental: quem ganha a competição por votos leva.

Ora, vale mentir numa eleição? Vale inventar coisas dúbias sobre o concorrente? É claro que vale. Vale fazer promessas que você nunca realizará? É óbvio que sim. Se isso fizer você ganhar, está valendo.

As pessoas, na sua imensa maioria, são pouco inteligentes, não têm muita memória e estão afogadas num dia a dia horroroso. Vale se aproveitar disso para convencê-las de que você vai fazer a rotina medíocre delas um pouco ou muito melhor? É claro que sim. Lembre-se: o importante aqui é vencer a competição por votos.

Está "autorizado" mentir numa eleição? Não apenas está, mas isso quase sempre funciona a favor de quem inventa as melhores mentiras.

E, lembrando que a profissão de político é uma carreira, o que vemos atualmente é que essa corrida por votos, uma vez vencida, entra em hibernação. Só que ela está diante de todos nós o tempo inteiro, porque o que ocorrer nesse período pode sempre impactar quem vencerá o próximo round, a próxima corrida por votos.

É óbvio que, como eu não estou preocupado em prestar um serviço a ninguém nem contra ninguém, posso afirmar o que estou dizendo aqui. Na verdade, não estou afirmando nada, estou apenas descrevendo um fato. Você pode mentir, enganar os outros, faltar com a palavra, contanto que ganhe a competição por votos.

Um político, um militante ou alguém que trabalha na administração de um governo jamais poderia dizer isso, porque eles estão conectados à vitória de um certo candidato.

E com as redes sociais? Como fica toda essa história? Um circo total. Se, como foi dito até aqui, o poder na democracia é legitimado pela competição pelos votos, é inevitável que, com as redes sociais, o vale tudo seja absolutamente total.

E aí surge aquela questão típica de iniciantes: como fica a ética? Em lugar nenhum. Ela fica presa dentro do celular do marqueteiro digital.

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