Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé
Descrição de chapéu Itália

O que podemos aprender com o politeísmo do Império Romano

Em Roma, viviam, lado a lado, a crença e a descrença em diversos deuses

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Afora as evidentes diferenças históricas e técnicas, Roma foi, pelo menos no Ocidente, a maior civilização e império que já existiu. O Império Britânico se aproximou, mas não foi nem de longe um império com tamanha duração e solidez. Os Estados Unidos são um nada. A experiência da longa duração do tempo é algo extinto em nosso mundo.

A pergunta que Edward Gibbon (1737-1774) faz a si mesmo no seu monumental "Declínio e Queda do Império Romano", que conta com um compilado no Brasil pela Companhia das Letras, é: o incrível não é que o Império Romano —Roma e Constantinopla— tenha declinado e caído, o incrível é que tenha durado tanto tempo.

A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual com pincel e nanquim com traços pretos e manchas cinzas aguadas. O fundo foi colorizado digitalmente em amarelo suave. Em traços simples, bem estilizados, marcados com pincel fino, mostra um horizonte curvo de uma planície e, bem distantes, muitas pessoas juntas. Vários fios bem finos saem, na vertical, vindos da direção de um céu, marcado com nuvens, e descem até cada figura.
Ricardo Cammarota

São muitas as hipóteses para responder a essa pergunta segundo Gibbon. Uma delas é assaz interessante e versa sobre a têmpera romana com relação à religião.

Já se sabe com razoável evidência que Roma —a original— estava longe de ser uma sociedade religiosamente intolerante, como o cinema e avaliações apressadas acabaram por produzir no senso comum.

Gibbon apresenta o politeísmo romano como sendo um panteão de deuses que estava sempre aberto para novas adesões. A produção seria mesmo infinita, como mitologias gregas e romanas revelam ao historiador dessa antiguidade.

O homem e a mulher comuns aceitavam todos os deuses de forma natural, isto é, na dependência da necessidade, do caso específico, ou do pedido ou sofrimento em questão. Rituais, ritos, liturgias de diferentes deuses ou crenças eram aceitos por todos, sem discriminação, inclusive produzindo sínteses mítico-teológicas múltiplas.

Se as pessoas comuns rezavam para todos os deuses —e quanto mais deuses, melhor—, os filósofos não acreditavam em nenhum deles.

A filosofia antiga era um estilo de vida, como bem nos mostrou Pierre Hadot (1922-2010), o filósofo e historiador da filosofia antiga. Sendo um estilo de vida, a filosofia competia com a religião para aqueles que entendiam que a vida deveria ser conduzida pelo pensamento livre e não por práticas e crenças no sobrenatural de alguma forma.

Estoicos, epicuristas, céticos, todos ateus no sentido dado por Gibbon —os filósofos não acreditavam em nenhum dos deuses— ofereciam estilos de vida que, basicamente, desconfiavam da submissão à crença nos deuses. Viviam, lado a lado, crenças em diversos deuses, com a descrença em todos eles.

Por outro lado, os magistrados, nos diz Gibbon, consideravam todas as crenças úteis porque garantiam alguma forma de constrangimento do comportamento, facilitando o trabalho de controle e imposição da lei.

Nesse sentido, a fé e a adesão a um conjunto de crenças e deuses diferentes, digamos, eram avaliadas como uma ferramenta civilizadora, na medida em que sustentava o convívio social, em vez de impor reveses em nome de apenas um deus verdadeiro.

Teria Roma durado tanto tempo, fosse ela monoteísta? Teria Roma sido capaz de assimilar povos tão distintos, fosse ela certa de carregar em seu seio uma verdade definitiva sobre o mundo divino? A fragmentação do politeísmo conviveu melhor com a expansão e poder romanos —não é à toa que, grosso modo, os mil anos da Constantinopla cristã foram um lento e gradual declínio do império.

Interessante notar que o biógrafo de Winston Churchill (1874-1965), Andrew Roberts, na sua obra "Churchill: Caminhando com o Destino", falará da ausência, para o primeiro-ministro inglês, de qualquer referência ao cristianismo como fundamento da expansão britânica em seu império.

Pelo contrário, nos diz o autor, foi exatamente a influência sobre Churchill do pensamento de Gibbon acerca de Roma, e seu modo de ver as religiões romanas, que o teria levado a descrer na divindade de Jesus Cristo e mesmo nunca ter citado a palavra "Jesus" em seus milhares de discursos, e apenas uma vez "Cristo", dissociado da ideia de salvador do mundo. Vale dizer que, diante de Churchill, todos os líderes posteriores são menores.

A chamada tolerância religiosa parece estar mais associada à descrença num deus único do que a apaixonada fé nele.

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