Chico Buarque não cantará mais a canção "Com açúcar, com afeto". Ele já não a canta em shows faz tempo, mas isso não importa. O que importa é o motivo alegado: segundo o músico, a letra incomoda feministas e ele concorda com elas. Em 2017, outra canção de Chico, "Tua Cantiga", também incomodou feministas. Saindo do meio musical, a série "O Mecanismo", o documentário "O Jardim das Aflições" e obras de Monteiro Lobato já foram alvo desse boicote travestido de crítica chamado "cancelamento".
Cancelar artes e artistas por motivos políticos não é novidade. O curioso, agora, é ver uma esquerda que usa conceitos pós-modernos encampar esse movimento. Achar que uma canção ou filme produz um único sentido (machista, racista etc.) em uma audiência passiva é uma visão obsoleta da comunicação. Essa relação direta entre mensagem e efeito vem da Teoria da Agulha Hipodérmica. Uma teoria de raiz positivista, dos anos 40, que, como o nome diz, afirmava que o sentido de uma mensagem midiática seria "injetado" na mente do receptor.
Porém esse paradigma comunicacional já foi superado. Exemplos: Néstor García Canclini constata as ressignificações de produtos culturais estrangeiros em comunidades latino-americanas; Judith Butler, em "Excitable Speech", diz: "Afirmar que certos proferimentos são sempre ofensivos, independentemente do contexto, que carregam seus contextos consigo de modos de difícil descrição, ainda é não compreender como o contexto é invocado no momento do proferimento".
Ou seja, o significado das mensagens pode ser alterado pelo receptor, uma parte do sentido é construída na recepção através de contextos de interação prévios (educação, família etc.) e in loco (quem fala, com quem, onde fala). A possibilidade de muitos leitores acharem que este texto, que agora concluo, é machista ou racista só comprova a validade dessas pesquisas e como a crítica da militância de esquerda pós-moderna a obras de arte é datada, contraditória e equivocada.
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