Manuela Cantuária

Roteirista e escritora, é criadora da série 'As Seguidoras' e trabalha com desenvolvimento de projetos audiovisuais

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Manuela Cantuária
Descrição de chapéu

Não dá para tomar um 'viva, Bolsonaro', estalado na têmpora, sem sentir o golpe

Quando ouço o brado delirante da minha vizinha patriota imagino como deve ser exaustivo defender o indefensável

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Todos os dias, uma mulher para na esquina do quarteirão onde eu moro para sacolejar uma bandeirola do Brasil aos gritos de “viva, Bolsonaro”.

Todas as noites, ela bebe duas ou dez latinhas de cerveja em uma barraca de x-tudão estrategicamente posicionada em frente à minha janela.

O álcool sobe, os decibéis acompanham. “Viva, Bolsonaro.” Gritos agudos como o último suspiro de um golfinho e angustiantes como um bordão que não funciona.

Ilustração de um golfinho usando peruca loira, batom vermelho, rímel e sapatos de salto pretos na nadadeira caudal, na qual se equilibra para ficar em pé. Ele segura uma latinha amarela e emite um sinal que sobe até uma pessoa que está na janela de um prédio. Além do edifício no fundo, há mais latinhas amarelas em um balcão e uma placa "X-TUDÃO".
Publicada nesta terça-feira, 6 de abril de 2021 - Silvis/Folhapress

Quando assisti à tal performance de perto pela primeira vez, não dei a devida importância. Afinal, as pessoas têm o direito de passar vergonha da forma que bem entenderem, pensei. Ainda estamos em uma democracia, ou quase isso.

Até porque ela não escolheu aquele seu point à toa: a alguns metros dali, uma viatura da Polícia Militar costuma patrulhar o local. Aproveito o espaço para prestar toda a minha solidariedade a esses heróis que são obrigados a aguentá-la por tardes inteiras.

Essa proximidade com a polícia vem a calhar nos frequentes embates ideológicos —também conhecidos como barracos— que ela provoca.

Compreendo a revolta dos pedestres. Não dá para tomar um “viva, Bolsonaro” assim, estalado na têmpora, sem sentir o golpe. A vontade de reagir é muito grande.

Eu mesma me tornei um alvo fácil, isolada há um ano no mesmo apartamento, envolvida em roupões e paranoias feito um cosplay do mafioso Tony Soprano, espumando a cada grito dela tal qual um cãozinho de Pavlov.

As ondas sonoras de cada “viva, Bolsonaro” proferido por essa mulher se propagam até a minha janela, ricocheteiam em meus tímpanos e são decodificadas por meu córtex cerebral da seguinte maneira:

“Viva, 300 mil mortos; viva, 4.000 mortos por dia; viva, todas as mortes que poderiam ter sido evitadas; viva o primeiro lugar no ranking mundial de mortes por coronavírus; viva a morte; viva o genocídio; viva a ditadura e viva a morte mais uma vez, caso isso não tenha ficado suficientemente claro”.

Por muito tempo, eu só queria que ela calasse a boca. Achei que seus gritos me levariam à loucura.

Pelo contrário. Quando me sinto esgotada, no limite da razão, e escuto o brado delirante da minha vizinha patriota, imagino como deve ser exaustivo defender o indefensável.

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