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Aterros se tornaram ideia fixa, mas prioritário é reciclar orgânicos

O especialista e consultor Antonio Storel avalia os dez anos da Política Nacional dos Resíduos Sólidos

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A Política Nacional dos Resíduos Sólidos faz dez anos. Aprovada em agosto de 2010, foi tema de debates que se arrastaram por duas décadas antes de ter um texto final, que é considerado avançado e comprometido com as leis de defesa do meio ambiente no país.

A lei instituiu a hierarquia na abordagem dos resíduos. Diz que é preciso evitar a geração de resíduos em primeiro lugar, indica que é necessário reciclar os materiais após o uso e que só pode ser aterrado o que não é passível de reciclagem nenhuma, e também traçou as bases para o estabelecimento das responsabilidades sociais de cada setor da cadeia de produção e consumo.

Uma montanha de composto orgânico aparece na série 'The Umbrella Academy'
Uma montanha de composto orgânico aparece na série 'The Umbrella Academy' - Reprodução

Desde que a lei foi aprovada, a produção de resíduos no país aumentou 11% — passou de 71,2 milhões de toneladas por ano para 79 milhões. Apesar de a coleta ter aumentado, 29 milhões de toneladas são encaminhados para locais inadequados, os lixões, e ao menos 6,3 milhões de toneladas sequer são recolhidos, sendo abandonados no meio ambiente, segundo dados da associação das empresas de limpeza, a Abrelpe.

Mas, embora os lixões sejam um problema ambiental gravíssimo, a discussão focada apenas em acabar com eles e conseguir financiamentos para a construção de aterros é rasa, na avaliação de Antonio Storel.

O fundamental, diz, é reciclar os orgânicos, que são a maior porção do lixo. Tirando os orgânicos e os recicláveis, o que resta, que são os rejeitos, é a única parte que pode ser aterrada. Um volume muito menor. Portanto, para reduzir o tamanho do problema, é preciso fazer a separação doméstica em três frações, no mínimo —recicláveis, orgânicos e rejeitos.

Storel é agrônomo, especialista em gestão e políticas públicas e foi coordenador de Resíduos Sólidos Orgânicos na Autarquia de limpeza urbana na Prefeitura de São Paulo de 2013 a 2016. É consultor Sênior da Humusweb em Gestão Sistêmica de Resíduos Sólidos Orgânicos. Esteve à frente de uma das experiências mais importantes de tratamento de resíduos orgânicos urbanos do Brasil, o projeto que abriu pátios de compostagem com restos de feiras de rua e poda de jardins e vias públicas. A seguir, trechos da entrevista de Storel.

A PNRS é considerada uma boa lei que não saiu do papel. O que mudou no país por causa da lei? Ela demorou para nascer 20 anos e quando saiu acabou incorporando a legislação ambiental, o que é muito bom. Tudo de positivo que tem na lei ambiental está incorporado: a precaução, o princípio do poluidor-pagador, a necessidade da comunicação social com a comunidade afetada. Esses eixos são muito importantes, porque dão segurança. A lei ambiental, a de resíduos e a do saneamento são interligadas. Não dá para jogar fora os princípios dessas leis. Mas agora é preciso dar um chacoalhão no setor. Fazer ver a prioridade.

Sempre se diz que a sociedade e os governos não fizeram a lição de casa, porque o país ainda tem a maior parte das cidades usando lixões. Nesses dez anos a discussão ficou muito focada em aterro. O aterro sanitário aparece como única solução possível para as cidades. Mas ele é caro. E dura pouco. Os aterros são soluções de grande escala, boas apenas para municípios grandes. Mas há soluções muito mais baratas e descentralizadas que resolvem 90% dos resíduos em mais de 80% dos municípios – aqueles com menos de 50 mil habitantes (o país possui 665 cidades com população maior que 50 mil).
O mais importante é que a lei instituiu a hierarquia ao falar de resíduos: não geração, redução, reutilização, reciclagem, tratamento disposição final ambientalmente adequada de rejeitos.

Então, a prioridade tem de ser os orgânicos, que são a maior parte do nosso lixo! Deveria ser o primeiro a ser resolvido. A lei diz claramente que a reciclagem é física, química e biológica. E ela é prioritária em relação a qualquer tratamento.

A compostagem é a reciclagem biológica. E esse material tem de voltar para a natureza. O composto orgânico faz parte do ciclo do alimento. Por isso tem de haver uma segregação boa na origem, para que o produto final seja de boa qualidade para a agricultura. Então, para cumprir a lei, se acaba chegando na necessidade de fazer a separação doméstica em três frações. Com ela, se tem melhor qualidade de orgânico, os recicláveis descontaminados e um volume muito menor de rejeito para mandar aterrar.

Cartela que orienta associados para o descarte de orgânicos do Instituto Ecozinha
Cartela que orienta associados para o descarte de orgânicos do Instituto Ecozinha - Divulgação

Uma das críticas comuns à PNRS é que, apesar de ter desenhado a logística reversa e indicado que há responsabilidade de todos, ela não determina exatamente a abrangência dessas responsabilidades. É. A indústria fica numa posição muito boa, porque ela espera o reciclável vir até ela. Na lei alemã, existe a responsabilidade estendida dos produtos [a REP trata os resíduos pós-consumo como consequência da produção, assim como a poluição atmosférica ou os efluentes líquidos gerados pelas fábricas e define que os produtores devem ser responsabilizados pelo impacto ambiental destes materiais]. Quem coloca um produto no mercado foi que escolheu a forma que aquele produto tem e tem responsabilidade de cuidar da sua reciclagem e da cadeia inteira. É responsável por buscar e reciclar. Aqui no Brasil, a nossa lei, teoricamente, foi mais democrática e avançada, mas, na verdade foi criada mais uma jabuticaba. A lei fala de corresponsabilidade. Isso paralisa tudo. Se não está determinada a parte de cada um, não anda. A aplicação do conceito do “cradle to cradle” é que se você planejar o produto desde o berço para ele ser 100% reciclável ou 100% compostável seu produto não tem rejeito. Está nas mãos da indústria o poder de reverter.

Seria necessária então uma alteração na lei para deixar claras as responsabilidades? Acho que a PNRS é boa e não deve ser alterada. Os acordos sobre a responsabilidade são mais uma questão de advocacy, de articulação política e social.

A ideia da reciclagem biológica – compostagem- está avançando no Brasil? Duas decisões muito importantes mostram que sim. Em 2017, foi aprovada a resolução 481 do Conama que estabeleceu como deve ser o composto orgânico. Agora, em julho de 2020, o Ministério da Agricultura (Mapa), através de uma instrução normativa (61), criou uma diferenciação entre os compostos. Aqueles que vêm de resíduo urbano sem segregação na origem são de classe B e os que vêm de resíduo urbano segregado na origem, sem comtaminantes, são de classe A. Isso cria um mercado real para o bom composto e indica o que o produtor deve fazer para conseguir valorizar seu produto. E o que fazer para ter um bom composto, que pode ser usado para a produção de alimento? Separar bem na origem.

Essa resolução do Mapa mostra também que a compostagem, que era vista como um tema rural, está sendo entendido como um tema da cidade — se fala explicitamente de resíduo urbano— o que é um ótimo sinal do amadurecimento do tema.

Acho que a experiência dos pátios de compostagem das feiras em São Paulo, a maior cidade do Brasil, influenciou essa mudança de perspectiva. Em Florianópolis, de onde veio a tecnologia social que foi aperfeiçoada, havia uma experiência com 2 toneladas. Em São Paulo passamos para 10 toneladas, aperfeiçoamos algumas técnicas e a infraestrutura. O programa demonstrou que é possível, barato e evita o encaminhamento de um grande volume para o aterro.

Como essa experiência foi usada no projeto de reciclagem dos orgânicos de restaurantes em Brasília? O Instituto Ecozinha envolve 84 restaurantes de Brasília e já tem cinco pátios de compostagem funcionando. Para combinar com os restos de alimentos, são usadas as podas trituradas de árvores que vêm do poder público. O projeto foi impulsionado pela lei que previu que os grandes geradores teriam de cuidar do encaminhamento de seus resíduos diretamente. A separação em três frações para aproveitar orgânicos e recicláveis e diminuir o volume a ser enviado aos aterros se mostrou atraente.

Dei um curso sobre todo o sistema. Do curso, alguns já se interessaram em criar pátios. Eles também fazem a reciclagem de vidro. Se fossem pensar pela lógica da indústria, não reciclariam, pois na região não existe uma fábrica de vidro. Então eles armazenam, moem o vidro e enviam moído, em quantidade maior, para as empresas que fazem vidro. Mas voltado aos orgânicos, apareceu uma outra rota importante. Enviá-los para alimentação de porcos em zonas próximas.

Agora, por causa da pandemia, diminuiu o fluxo dos restaurantes e eles estão captando os resíduos orgânicos de condomínios. O Ecozinha é um bom exemplo. A reciclagem dos orgânicos não tem volta. Está até nas séries. Num episódio recente do “The Umbrella Academy” (série da Netflix), dois personagens aparecem deitados numa montanha de composto.

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