Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Coelho

Ironia cega

Gracinhas e oficialismo distorcem retrato de  época no filme 'Imagens do Estado Novo'

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Ilustração de André Escarma para coluna de Marcelo Coelho de 28.mar.2018
André Stefanini

Getúlio Vargas jogando golfe? Esta é uma das muitas surpresas (ao menos para mim) no documentário "Imagens do Estado Novo -1937 a 1945", de Eduardo Escorel, em exibição no shopping Frei Caneca.

Com quase quatro horas, o filme recupera, com nitidez de cristal, toneladas de arquivos históricos e dúzias de filmezinhos amadores guardados como recordação familiar.

Nomes importantes nos relatos sobre o período, como Armando de Salles Oliveira (candidato paulista nas eleições presidenciais anuladas por Getúlio), Gustavo Capanema (ministro da Cultura que tinha Drummond como chefe de gabinete) ou Oswaldo Aranha (ministro antifascista das Relações Exteriores) aparecem vivíssimos em comícios ou cerimônias oficiais.

São também fantasmas, como escreveu Otavio Frias Filho na Ilustríssima: figurões discursando com voz "empostada e cantante", numa época em que as ruas pareciam inundadas por um "oceano de chapéus".

Ao lado da precisão visual das imagens, uma sensação de irrealidade acompanha, assim, o registro de um Brasil tão antigo (ah, e como!), exposto a golpes de Estado e intervenções militares.

Sim, tudo parece ter a inconsistência algo inocente e cômica de um passado que queria ser "moderno".

Mas parte da irrealidade se deve ao próprio filme. Baseando-se em montanhas de arquivos recuperados, "Imagens do Estado Novo" conhece um predomínio de fontes oficiais: os noticiários do próprio governo, os jornais cinematográficos da Segunda Guerra e os registros, não menos engravatados, dos comícios da oposição.

A narração em "off" adota, involuntariamente, o tom cerimonioso de tudo. Acha interessante citar sem ironia, por exemplo, um depoimento dizendo que "os músicos do Cassino da Urca abrilhantavam uma vida que corria sem problemas".

Vemos Drummond ao lado do ministro Gustavo Capanema. Apesar de suas convicções de esquerda, diz o documentário, o poeta permaneceu no governo ditatorial porque colocava "os deveres da amizade" acima das ideias políticas. Não é meio chapa-branca essa explicação?

No típico estilo dos manuais de história brasileira, destaca-se que o populismo getulista privilegiava a comunicação direta com as classes trabalhadoras, sem canais institucionais organizados. Sim, mas para demonstrar isso são citadas cartas de pessoas simples pedindo ajuda ao presidente.

Num cacoete comum ao chamado "olhar crítico", mostra-se um fenômeno generalizado até hoje como se fosse curiosa particularidade de um mundo político tão bizarro como os maiôs masculinos cobrindo o peito e os ternos de jaquetão.

O isolamento visual do ditador --sempre enaltecido como uma espécie de santo-- é comum na cenografia de todo o período. O problema é que, seguindo essa documentação, o filme não tem espaço para mostrar as reais alianças que possibilitavam o poder de Getúlio.

A indústria crescia? O governo dispunha de verbas para gastos públicos? A população urbana aumentava? Em quase quatro horas, daria tempo de trazer informações sobre isso; tanto a popularidade real de Getúlio como a queda de seu governo se tornam quase acidentais, quando o foco insiste no artificialismo dos eventos programados.

Para evitar, naturalmente, esse tipo de crítica, o filme de Eduardo Escorel recorre a um expediente que o falseia ainda mais. Trata de fazer o contraponto entre os registros oficiais e os filmezinhos domésticos.

Narra-se o ataque nazista a navios brasileiros enquanto se mostram cenas de Carnaval. O que isso quer dizer? Que a maior crise da civilização moderna era uma palhaçada? Que, em meio a uma guerra, pessoas também dançam e se divertem? Que mal há nisso?

Finda a Segunda Guerra, revelam-se os horrores dos campos de extermínio. O filme mostra cenas de um mercado, com peixes agonizantes no balcão. É "cinema poético"? O contraponto e a ironia se transformam em ligeireza e arbitrariedade.

As torturas de Filinto Müller são descritas em "off" enquanto vemos cenas de um domador de circo com um elefante amestrado. Ironia? Gracinha? Irresponsabilidade?

Natural que, nesse filme, tudo pareça distante, irreal e ridículo. "Imagens do Estado Novo" faz o possível para fugir da realidade, infinitamente séria, do período que retrata. A ironia pode ser cega. Que, no futuro, tenhamos melhor sorte.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior deste texto mencionava erroneamente um "ataque nazista a navios alemães", quando o correto é "ataque nazista a navios brasileiros". Também o político Armando de Salles Oliveira foi erradamente identificado como Armando Salles de Oliveira. O texto foi corrigido.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.