Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Descrição de chapéu

O mimimi e o nã-nã-não

Enquanto a esquerda protesta, a direita tem o dedinho em riste; depois, vem uma pedra por cima 

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Ilustração Marcelo Coelho
André Stefanini/Folhapress

Anoto algumas coisas que percebi conversando com um professor universitário belga, a quem hospedei por uns dias na semana passada. Ele tinha vindo para participar de alguns encontros e seminários na USP. A primeira reunião estava marcada para quinta ou sexta-feira, não me lembro bem.

Ele chega de avião; buscaram-no no aeroporto. Levo-o para jantar, passo-lhe a senha do wifi, ele dorme, amanhece, o tempo passa, a hora do seminário se aproxima... e ninguém dá notícia.

Estará tudo confirmado? Virá alguém buscá-lo? Emails ficam sem resposta. Tomo a iniciativa de ligar para algum dos interessados no evento. "Ah, então... claro... ele está aí com você?" Sim, respondo. Ofereci-me para levar o belga até a USP --não havia, aparentemente, nenhum transporte programado. Deixo o número do meu celular com o organizador. "Ótimo, aí quando ele chegar no nosso instituto dá tempo de almoçarmos antes do encontro."

Acho o lugar na Cidade Universitária —não há muita sinalização nem ninguém que possa informar direito. Numa sala, vejo o cartaz anunciando o seminário; o nome do professor não está incluído, e não havia ninguém.

"Parece que todo mundo saiu para almoçar", diz um funcionário. "Onde?" "Em geral eles vão lá naquela faculdade". Saímos à procura do grupo, sem sucesso, e voltamos, atrasados, ao ponto de origem.

Tinha acontecido um mal-entendido, de resto perfeitamente desculpável: esperavam o professor numa outra entrada do instituto, estranharam que ele não tivesse aparecido, e ficou por isso mesmo durante aproximadamente uma hora e meia.

Alguém me pergunta: "Você não procurou a fulana?" Certamente a ideia não tinha me ocorrido, porque ninguém havia me falado de fulana antes daquele momento.

Missão cumprida, voltei para casa. Ao que parece, dali por diante, tudo transcorreu com muita alegria: o belga contou-me que foi efusivamente recebido, ouvido e discutido.

Havia algumas coisas a explicar ao professor. A primeira é que, em São Paulo ao menos, nada ocorre conforme o planejado. Sempre há problemas de trânsito, precariedades de informação, atrasos e tropeços. Por isso mesmo, talvez seja perda de tempo tentar entrar em contato com alguém para confirmar o combinado. Nenhuma confirmação é confiável, de qualquer jeito.

Do mesmo modo, se alguém não aparece ou está muito atrasado, isso será razoavelmente normal, não havendo razão para pegar o telefone e perguntar pelo WhatsApp o que terá acontecido.

Por último, o fato de ninguém dar notícia ou perguntar sobre o seu paradeiro não significa que desprezem você. Ao contrário, todos sem dúvida estão felizes com sua presença.

O problema —pelo menos foi essa a minha interpretação— é que a sua existência, caro professor belga, tem algo de abstrato.

Se você estiver na minha frente, falando comigo, ocupará o centro do meu coração. Saia de cena, e seus emails serão ignorados, o que combinamos deixa de ser digno de nota; você praticamente terá deixado de existir. Todo esse gênero de comportamento tem, a meu ver, suas consequências políticas.

Em junho de 2013, só se falava das "passeatas que mudaram o Brasil". Embora aquele mês tenha trazido diversas consequências para o cenário político —a principal foi a direita deixar de ter vergonha de ser o que é—, o fato é que ninguém se lembra muito mais de nada.

Os protestos contra o assassinato da vereadora Marielle Franco inclinam o pêndulo para o outro lado, deixando a direita algo desmoralizada no seu silêncio, nos seus preconceitos e barbaridades.

Mas a estrutura geral do comportamento político brasileiro me deixa pessimista. Pode até ser que Exército e PSOL, numa incrível convergência de interesses, venham a comemorar uma eventual punição dos assassinos. Mas as Forças Armadas continuam enfaticamente avessas a qualquer responsabilização histórica pelas violências da ditadura.

Diz-se que tudo é "mimimi" da esquerda. A direita especializou-se em outra onomatopeia. É o "nã-nã-não". O dedinho fica em riste.

Mata-se a vereadora —é um crime e tanto—, e se diz que, ora bolas, foi "só mais uma". Irão acabar-se, uma hora, os protestos.

Depois, ninguém mais está nem aí. Nem mesmo para responder recados pelo celular; que dizer de responsabilizar-se pelo que aconteceu anteontem.

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