Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho
Descrição de chapéu

Bem mais do que Magritte

Exposição de arte belga em São Paulo é oportunidade para descobrir muita pintura desconhecida

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

Em matéria de pintura moderna, a Bélgica não conta com muita gente conhecida.

A exceção é o surrealista René Magritte (1898-1967), cujo quadro de um cachimbo com os dizeres "Isto Não é um Cachimbo" é tão famoso que ninguém, a rigor, deveria se importar muito se aparece ou deixa de aparecer numa exposição de arte.

Há algo de particular, de silencioso e de magnético em alguns outros quadros de Magritte, mas ele é mais um criador de paradoxos visuais do que um artista plástico: não traz uma nova maneira de ver o mundo, ou de pintar o que tem dentro de si.

Ao contrário, parece fazer questão de manter o máximo de convencionalidade na cor e no desenho, um pouco como o comediante Buster Keaton se especializou em fazer gags sem mover um músculo do rosto.

Certamente não é Magritte a principal atração da mostra "Cem Anos de Pintura Belga", em cartaz até 10 de junho no Centro Cultural Fiesp (avenida Paulista, 1.313, entrada grátis). Um quadro dele, com torsos femininos cinzentos, não faz má figura. Mas o interessante é descobrir outros artistas belgas do século 20, pouco ou nada conhecidos por aqui.

Gosto mais de quadros bem escuros, de modo que as versões belgas do impressionismo e do pontilhismo (a escola "luminista"), como aquele mar de margaridas de Emile Claus (1849-1924), parecem cansativos pelo excesso de sol.

Théo van Rysselberghe (1862-1926) é o nome mais conhecido desse grupo, mas seu "Retrato de Claire Demolder" convence pouco, com a expressão desafiadora da modelo surgindo deslocada no meio de uma infinidade de tracinhos, mosquitinhos e libélulas de todas as cores na roupa, na poltrona e na parede.

Outro pintor de grande importância na arte belga é James Ensor (1860-1949), que colocou a superabundância de cores a serviço de uma imaginação descontrolada: seus carnavais de caveiras, desfiles de máscaras e festivais grotescos têm um representante tímido na Fiesp —mas ali há também uma grande natureza-morta, conflagrada de vermelho, digna de se tirar o chapéu.

Em matéria de esqueletos, o melhor é o de outro surrealista, Paul Delvaux (1897-1994), finamente desenhado, com toques de branco, rosa, amarelo, azul —todas as cores que você quiser, mas contidas e replicadas em sombra no fundo do quadro.

Delvaux é um interessante meio termo: ao mesmo tempo "certinho" e imóvel como Magritte, e com uma malignidade, uma perversão mais próximas de Ensor.

Outros pintores fazem ótimo trabalho, seguindo a simpatia mais operária e rústica do modernismo de Léger (é o caso do casal de marinheiros e do sanfoneiro de Gustave de Smet) ou o gesto rude, masculino de Roger de La Fresnaye (num vigoroso e escuríssimo retrato de Constant Permeke). Mas, de certo modo, esses artistas todos parecem em busca de uma identidade própria.

Um mundo desbragado de fantasia —impregnado de presságio e morte— facilmente se nutre com raízes medievais e barrocas, mas também terá sido estimulado pela sorte de um país brutalizado militarmente na Primeira Guerra Mundial.

Morte e escuridão: ninguém melhor para retratar isso do que Léon Spilliaert (1881-1946), que infelizmente só aparece com dois pequenos quadros no Centro Cultural Fiesp. São como a paisagem de quem acorda de um pesadelo —e percebe que ainda está dentro dele. Uma faixa branco-pardacenta representa a praia, uma rua, um canal: o mundo em volta já parece ter desaparecido. É noite.

 

Ocorrida nesta segunda-feira, a morte do economista Paul Singer impõe um final mais triste a este artigo. Fundador do PT, manteve uma integridade intelectual e pessoal que poucas pessoas, quaisquer que sejam suas convicções, podem sequer aspirar a possuir.

Fazia bem à alma olhar nos seus olhos claríssimos, e notar a curvatura modesta das suas costas, quando alguém (eu mesmo me pus nesse papel) se dispunha a contestar, a provocar, a radicalizar algum ponto de vista.

Ele era a paciência, a humanidade em pessoa. Por espírito democrático, sem dúvida, proveniente quem sabe da velha social-democracia austríaca, racional e prática, sem ser concessiva. Mas sobretudo por uma qualidade de alma. Sua tolerância, sua capacidade de ouvir, não eram apenas atitudes políticas: aproximavam-se da santidade.

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