Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho
Descrição de chapéu

Sou muito pé-frio, mas quem não é?

Mesmo sem querer torcer, o brasileiro continua preso à Copa e marcado pelo 7 a 1

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

Pensei que fôssemos ficar livres desta vez. Mas não —depois do empate com a Suíça, voltamos a viver a mesma agonia, a mesma incredulidade, o mesmo encontro com o real.

Claro que não foi um 7 a 1. Mas, até o jogo de domingo, estávamos criando uma dupla estratégia para negar o grande fiasco de 2014.

Em primeiro lugar, com bons fundamentos na realidade, estávamos convencidos de que a seleção iria passar facilmente por todos os jogos da Copa. Não foram espetaculares todos os amistosos?

O histórico de Tite era impressionante —e estávamos, bem ou mal, livres de Fred, Hulk, David Luiz e outros participantes do pesadelo de quatro anos atrás.

Bom, mas aí eu ligo a televisão e vejo algumas figurinhas que ainda estavam engasgadas na minha memória. Aquele ali, por exemplo: não é o que começou fazendo um gol contra?

Ah, respondem-me, ele é dos melhores jogadores do mundo. E esse outro, sempre zangado, não é o daqueles anúncios em que aparecia sem roupa? Sex symbol da Nike?

As pessoas perdem a paciência comigo. "Não sei de quem você está falando." Certo. Ah, esse é o Neymar. Conheço e acredito nele. Novo penteado, ah, ah, que ótimo. A vitória está no papo.

Apesar de meu reencontro negativo com Marcelo e Thiago Silva, ainda estava confiante. Tudo seria melhor, muito melhor. Essa era, como eu disse, a primeira parte da estratégia para esquecer o 7 a 1.

A segunda parte da estratégia consistiu no desinteresse pela Copa. Majoritário, segundo o Datafolha. Óbvio. Desta vez, não seremos feitos de otários.

Depois de uma greve de caminhoneiros, de uma "retomada do crescimento" que não houve, depois de Lula, Dilma, Aécio e Temer, já estava bom. A boa fé desapareceu. Torcida, nunca mais.

Veja-se a contradição. É a melhor seleção em décadas, mas não vale a pena torcer. Seremos provavelmente campeões, mas é um perfeito babaca quem acreditar nisso.

Esse instável arranjo mental não sobreviveu, pelo menos no meu caso, aos primeiros momentos do jogo contra a Suíça. Eis o Neymar. Olha o golaço de Philippe Coutinho. Irresistível. Já ganhamos.

Já estava pronto a torcer de novo. E assim que eu me entrego, a seleção começa a ter dificuldades, como se eu fosse o maior pé-frio de todo o território nacional.

Provavelmente, somos todos uns tremendos pés-frios. Sabendo disso, tentamos enganar as divindades do futebol fingindo que não nos interessávamos pela Copa.

Mas estamos presos a um negócio milionário, que não pode se dar ao luxo de dispensar a menor migalha de audiência. A máquina da televisão simplesmente produz o público de que necessita.

E nem é por maquiavelismo ou manipulação. O investimento na cobertura foi feito previamente. Como apresentar algo além do planejado?

O jornal, mesmo depois de noticiar o baixo interesse pela Copa, continuará cobrindo o evento com máxima ênfase. No fundo, não há nada de mais interessante a noticiar.

Bem que a Folha tentou. Na segunda, a manchete foi sobre a vitória de Iván Duque nas eleições colombianas. Dureza, hein? O resultado é que voltamos à Copa.

Com um sentimento de dupla humilhação. Torcemos, quando dizíamos que não iríamos ligar a mínima para o jogo. E vemos um desempenho medíocre da seleção, quando secretamente achávamos que desta vez seria um passeio.

Perder as esperanças é ruim, mas pior ainda é perder as esperanças que nunca tivemos de fato.
Um espírito maligno se aproxima e me diz: "Muito bem, agora que você perdeu, admita que estava levando o jogo a sério..." Respondo: foi só um empate! O espírito maligno sorri: "Não disse? Você está torcendo mais do que pensava. E ainda não perdeu as esperanças..."

É como se não pudéssemos nos livrar, portanto, dos jogos da Copa. Estamos presos ao mecanismo, assim como a Globo, a Folha, a rádio Jovem Pan, todo mundo e ninguém.

Pois estamos, na verdade, presos ao Brasil.

Ao lado da pesquisa dizendo que 53% dos brasileiros não se interessam pela seleção, surge outra mostrando que 62% dos jovens (entre 16 e 24 anos) gostariam de deixar o país.

É que nos sentimos, todo dia, perdendo de 7 a 1.

De quatro em quatro anos, vem uma Copa —e uma eleição. Não é coincidência. Acompanhamos o jogo com Marcelo, Thiago Silva, Neymar, por que não? Ou Fred, Hulk, quem quer que seja.

Você pode trocar Fulano por Beltrano, mas terá de torcer do mesmo jeito. E mudar de país, mudar o país, dá trabalho demais.
 

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