Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Coelho
Descrição de chapéu Otavio Frias Filho

Amizade se ensina e, com sorte, se aprende

Inquirição e intimidade nunca são invasivas quando movidas por afeto verdadeiro

Em muitos traços, Otavio Frias Filho se parecia com Kafka: o rosto triangular, o cabelo preto nascendo reto da testa, os olhos espantados e insaciáveis, como se buscasse no absurdo das coisas a prova científica de alguma coisa que, no fundo, seria insuportável de ver.

Mas Otavio também lembrava muito Maquiavel. No retrato feito por Santi di Tito (1536-1603) encontramos o mesmo nariz vulpino, os olhos em forma de casca de pistache, a boca fina e incolor, sorrindo discretamente.

Não era só isso o que fazia com que todos desconfiassem de Otavio à primeira vista. Era, afinal, o dono da Folha. Nas reuniões, tinha além disso o hábito de falar baixo, reservadamente, com alguém que estivesse próximo, furtando-se à conversação geral.

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

Às vezes, estava apenas combinando com algum amigo a maneira mais prática de fugir dali, para que nos dedicássemos ao que realmente lhe interessava ao longo da madrugada —as conversas especulativas sobre qualquer assunto, importante ou minúsculo que fosse.

Em que aspectos (ele dizia ser esta uma das suas palavras preferidas) o lado B de um disco pode ser considerado ao mesmo tempo "pior" e "melhor" do que o lado A? Haveria, no simples fato de ser o "B", uma qualidade a mais, obviamente impossível de ser atingida pelo "A"?

Por que óculos escuros tornam uma pessoa mais sexy?

Como terá sido a experiência de ouvir pela primeira vez a Quinta Sinfonia de Beethoven? Estaremos, hoje, ouvindo "outra" música, e não aquela imaginada por ele?

Que tipo de mentalidade levava alguém a tentar provar que o autor de "Hamlet" foi outra pessoa que não Shakespeare? Qual economista da USP, qual jornalista da Folha seria, no seu campo, um parente intelectual dos estudiosos que tinham essa convicção?

Se Tancredo Neves era a homeopatia na política, quem seria a alopatia? Ulysses Guimarães? Nessa ordem de relações, onde entravam Lula, Teotônio Vilela ou Brizola?

Eram inesgotáveis esses passatempos, em que a vontade de organizar o mundo se misturava ao seu desejo de embaralhar as tabelas e as planilhas mentais mais óbvias.

Otavio era insuperável no exercício de transpor, de traduzir, de construir não apenas uma metáfora, mas um verdadeiro sistema de metáforas —um "mundo bizarro", como ele gostava de dizer, em que livros pudessem ser divididos entre mamíferos e répteis, ou bandas de rock em darwinianas ou lamarckistas, e assim por diante.

Feita a "classificação", restava indagar o "porquê" da metáfora, a "lei" de funcionamento essencial de cada categoria. E isso se aplicava às pessoas: qual a "lei" básica de funcionamento, por exemplo, de Roberto Freire, de Marta Suplicy, do porteiro do prédio?

Imaginado o "sistema", Otavio se punha a desmontá-lo, a imaginar falhas e exceções. Nada o agradava mais do que descobrir a terceira, a quarta ou quinta causa de um mesmo fenômeno.

Fui vendo como ele era, nessa atividade intelectual sem rivais possíveis, depois de dissipada aquela desconfiança, que, como em todo mundo, inspirava em mim seus ares conspiratórios, maquiavélicos, imperscrutáveis.

Mas a maior descoberta foi outra. Ao mesmo tempo discretíssimo externamente, ele me pareceu nos primeiros contatos de uma indiscrição quase ofensiva.

Fazia-me perguntas íntimas que, de modo nenhum, eu estava preparado para responder. Na euforia, acredito, de uma amizade nascente, abria gavetas na minha casa; achei que era um louco, um doente.

Eu tinha, e tenho, amigos extraordinários. Mas sempre achava que havia limite para essas coisas; num exemplo hipotético, nunca perguntaria a um amigo gago se tentou tratar-se da gagueira, ou como esta começou.

Otavio me ensinou que a amizade pode ser tão sem limites quanto qualquer paixão.

Uma noite, depois de um tropeço amoroso bastante grave, me vi sozinho no carro. Não havia celular nem email naquela época. Passava de meia-noite. Percebi que era de Otavio quem eu precisava naquela hora. Ele voltava de férias, sem paletó, animado, criativo, interessado, presente. Sobretudo presente. Acho que sempre estará.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.