Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho

O narcisismo do homem das cavernas

No mundo mágico da direita, Bolsonaro enxerga no cabo Daciolo a própria caricatura

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

Figuras como o cabo Daciolo e o capitão Jair Bolsonaro podem ser ridicularizadas com facilidade, mas nem por isso deixo de me preocupar.

Sem dúvida o imprevisto aparecimento do cabo, no debate da semana passada pela TV Bandeirantes, contribuiu para reduzir o tamanho do capitão.

Um é a lente de aumento da naniquice do outro. Ao mostrar-se menos tosco que Daciolo, Bolsonaro decepciona seus adeptos. Ao mostrar-se mais ignorante do que Bolsonaro, Daciolo faz o bolsonarista passar vergonha por ser quem é.

Cresce a impressão de que Bolsonaro perde gás. É que o jogo das alianças políticas foi bem jogado pelo candidato do PSDB. Apesar de seu desempenho —desinteressante como sempre— no debate, Alckmin se sente otimista.

Mas a triste verdade é que, por mais extravagante que pareça o cabo Daciolo, e por mais estreita que seja a plataforma de Bolsonaro, há uma enorme parcela de brasileiros pensando como eles.

Quem já não ouviu a frase segundo a qual "bandido bom é bandido morto"? Mesmo sem sair do meu nicho de classe alta, ouço diariamente frases homofóbicas, machistas, violentas, fundamentalistas e fascistoides.

A sensaboria de Alckmin não consegue refletir esse extremismo de direita, francamente em voga no país.

Pois, se alguma coisa caracteriza o conservadorismo atual, é seu horror ao eufemismo, ao disfarce, ao bom comportamento.

Tendo escolhido o "politicamente correto" como alvo preferencial, a direita passou a fazer questão de ser desbocada. Acha bonita sua primariedade. É o narcisismo do homem das cavernas.

Na audiência sobre aborto promovida no STF, um defensor dos direitos do embrião apresentava argumentos diversos, e respeitáveis, em favor de seu ponto de vista.

Seu desequilíbrio se traía, contudo, quando evitava o termo "negros" em suas reflexões demográficas e sociológicas. Só falava em "preto".

Imagino a reação do direitista-padrão: "Ué, agora vão me policiar? Não é preto mesmo?" Ei-lo que se ofende. Reafirma seu vocabulário, e tem uma razão muito forte para isso.

Ao dizer "preto" em vez de "negro", ele acredita estar sendo mais "verdadeiro". Sem fazer concessões aos desejos e exigências dos movimentos sociais, o direitista pensa estar retratando a realidade "como ela é".

Eis um dos grandes confortos intelectuais (e uma grande fantasia) dos ultraconservadores. Eles se sentem mais "verdadeiros" do que os adversários, exatamente porque estes são "utopistas", sonham com "outra coisa".

Só que, com isso, a extrema direita termina presa a uma espécie de mania "realista". É o mundo do preto no branco. Do falou, está falado. Do é assim porque é assim.

Não é difícil ver até onde pode levar essa lógica de identidades estáveis, de fixidez vocabular e segurança essencial.

Quando tudo "é o que é", impõe-se concluir: se Fulano é homem, então é homem. Se Fulana for mulher, então é mulher. Assunto encerrado, sem meio-termo.

Não é outra a mentalidade dos que acreditam no texto literal da Bíblia. Se tal coisa está escrita, então é isso o que está escrito. Não há entrelinhas.

Do mesmo modo, "quem é bandido sempre foi e será bandido". Ingênuo quem pensa em "recuperar" o criminoso. Pau que nasce torto não se conserta.

Não espanta que a extrema direita também tenha atração pelo criacionismo. Macaco sempre foi e será macaco, como homem sempre foi homem, desde o início dos tempos.

Desde que concebido, o ser humano já é humano, argumentam os antiabortistas. Aqui tampouco há meio caminho. É uma visão de mundo em que nada muda, nada deveria mudar e, se mudou, está errada.

O horror à mudança recebe uma vestimenta retórica irresistível: a que diz que "o que é, é". Nesses termos, evidentemente, tudo ganha forte sabor de verdade.

Bolsonaro se olha no espelho: ele se sente autêntico, verdadeiro, igual ao que sempre foi. Sua identidade se multiplica, se reafirma e ecoa em cada desfile militar, nos homens marchando de uniforme a um só passo. Assim é o que tem de ser: seus olhos azuis se fixam na autossatisfação.

Eis que... Surpresa! Um outro candidato, Daciolo, aparece! Espelho, espelho meu, haverá alguém mais direitista do que eu? O espelho responde que sim. O reflexo se torna caricatura; o idêntico é pior do que o original, a cópia denuncia a artificialidade do modelo, e a identidade entra em crise.

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