Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Coelho

O poder moderador usa cabelo acaju

Atrasado e corrupto, o centrão pode também ter função estabilizadora no sistema

Ilustração
André Stefanini/Folhapress
 

Tenho a maior antipatia, claro, pelos políticos do centrão —em especial aqueles de cabelo pintado.

Senti bastante alívio, entretanto, quando vi que vários partidos de perfil claramente fisiológico terminaram recuando na hora de apoiar a candidatura de Jair Bolsonaro (PSL).

Em momentos de crise política feia, o velho jornalista Luiz Alberto Bahia (1923-2005) gostava de chamar a atenção para os fatores e instituições que, com todos os defeitos, agiam como "estabilizadores" do sistema.

Ele dava o exemplo —acho que isso faz mais de 30 anos— da Igreja Católica no Brasil: mesmo com seus militantes mais exacerbados, mantinha uma morosidade própria e valores essencialmente pacíficos, capazes de barrar em parte o caminho, que tantas vezes se acreditou inevitável, da guerra civil.

A própria desorganização da sociedade —com escassa filiação partidária e pouco entusiasmo ideológico— ajudava a esmaecer conflitos que, com as extremas desigualdades sociais vigentes, poderiam encontrar formas sangrentas de expressão.

Começo a acreditar que a fisiologia política, ao mesmo tempo que retarda nosso desenvolvimento, também funciona como um filtro dessa natureza.

Seria o caso, pelo menos, de analisá-la com um pouco menos de julgamento moral, ainda que este, de minha parte, continue negativo.

Há um lado péssimo e um lado não tão ruim no fato de partidos sem caráter se prestarem a apoiar qualquer governo. Foi ainda pior, a meu ver, quando se recusaram a dar estabilidade ao governo Dilma.

Propostas presidenciais majoritárias nas urnas não sobreviveriam sem a famosa "governabilidade", que naturalmente se compra a alto preço.

Falta detalhar, contudo, em que esse preço consiste exatamente. O loteamento de postos federais é um escândalo, sem dúvida —a começar pela gigantesca soma de cargos comissionados, autarquias, empresas estatais e ministérios.

A estrutura se sobrepõe à dos funcionários de carreira, que responderiam por uma administração apartidária e profissional.

Por aqui, entretanto, sabe-se desde o petrolão que mesmo os quadros estáveis de uma estatal se encontram facilmente expostos às tentações da propina e do acerto político.

Imagine-se, por outro lado, uma situação em que um único partido dispusesse, sozinho, da chave para toda máquina pública, sem dividi-la com ninguém. Terá sido este, provavelmente, o sonho do PT nos tempos de José Dirceu.

O objetivo do mensalão, já andei dizendo por aqui, foi provavelmente o de comprar diretamente deputados da base no Congresso sem depender das hierarquias partidárias a que eles estavam submetidos.

Roberto Jefferson, do PTB, desencadeou a crise ao perceber que perdia controle sobre os membros de seu partido: todos se aprontavam para atender diretamente a José Dirceu, sem dever satisfações a mais ninguém.

A divisão de cargos entre os partidos é coisa normal; pode mesmo ter o efeito de, habituando agremiações menores à administração federal, formar quadros políticos capazes de, mais tarde, tocar um governo democraticamente eleito.

Em outra ponta, há as famosas emendas parlamentares, a pressão constante que os fisiológicos exercem para gastos públicos nos seus currais eleitorais.

Isso constitui, claro, fonte de desperdício e irracionalidade nos investimentos do Estado.

Seria excelente se dispuséssemos de outro modelo. Mas essa atuação parlamentar tem sua legitimidade: deputados são eleitos como representantes, agenciadores, de benefícios que dificilmente chegariam a seus estados. Como querer que agissem diferente?

Parece faltar, sobretudo, um conjunto de mecanismos mais eficientes de controle presidencial sobre as votações no Congresso. O sistema oferece prêmios para a fisiologia, mas não sabe puni-la quando necessário.

Fazer o quê? Não sei. Há a esperança de uma reforma no sistema eleitoral, por certo. Virá? O certo é que a condenação moral, embora justa, não resolve nada tão cedo.

P.S. - A propósito do artigo publicado dia 8 de agosto, perguntaram-me qual foi a resposta de Marta Suplicy às bizarras perguntas de Enéas, num debate de candidatos à prefeitura. Entre falar sobre a composição do ar da cidade, sua "potamografia", ou a situação social no bairro de Marsilac, ela ficou com a última alternativa, respondendo com tranquilidade que era nada menos do que péssima.

Tópicos relacionados

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.