Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho

Para não arrancar os cabelos

Coletânea de estudos sobre o fenômeno Bolsonaro evita o panfletarismo de esquerda

Parece ter desaparecido a moda dos rolezinhos. Contava com minha simpatia: a mera presença de jovens da periferia num shopping de elite expunha a discriminação silenciosa em vigor naquele espaço.

Tratava-se, a meu ver, de uma prática política bem-humorada, antirracista e de esquerda. Tinha também um efeito pedagógico sobre os frequentadores (me incluo neles) e até sobre os seguranças do lugar.

Mas o fenômeno era mais complexo. As antropólogas Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco acompanham grupos de juventude na periferia de Porto Alegre desde 2009, focalizando as questões do consumo e da política.

Ilustração
André Stefanini

Notavam, quando a prática teve início —aí por 2011— uma espécie de contradição ideológica. Havia a mobilização contra o preconceito e um esforço de afirmar a própria identidade, sem dúvida.

Por outro lado, a ida aos shoppings fazia parte de uma adesão mais ampla aos valores da sociedade de consumo: tanto quanto o “orgulho periférico”, buscava-se o acesso ao mundo de Beverly Hills.

Passaram-se alguns anos e vieram as ocupações de escolas públicas pelo movimento secundarista. As pesquisadoras voltaram ao bairro porto-alegrense em 2016.

Surpresa: os participantes dos rolezinhos não tinham nada a ver com as ocupações. Ignoravam o movimento, ou consideravam-no “coisa de vagabundo”.

Há coisa de dois anos, já eram admiradores de Jair Bolsonaro. “O político se tornou um fenômeno, símbolo totêmico de identificação masculina com papel semelhante ao que a Nike ou a Adidas, como exemplos de grife, desempenhavam em tempos de crescimento econômico e apologia governamental ao consumo.”

Havia mais a descobrir. As antropólogas promoviam debates nas escolas da região. Notaram a velocidade com que as meninas aderiam ao discurso neofeminista —e o silêncio cuidadoso dos rapazes ao ouvir intervenções desse tipo.

Fizeram, depois, debates só com os meninos. A conversa ficou mais solta: “vagabundas”, “maconheiras”, diziam alguns a respeito de suas colegas de classe. Era o bolsonarismo.

Não que o entusiasmo pelo candidato se resumisse a uma reação frente às pautas feministas. O combate à criminalidade também era fundamental.

Mais uma surpresa: os jovens bolsonaristas se manifestavam unanimemente contra a tortura e a censura.
Na época da pesquisa, alguns também diziam ter medo do então deputado, “pois é extremista”. Mencionavam o risco de ditadura e da própria personalidade de Bolsonaro.

As antropólogas concluem que os jovens da periferia “são muito mais flexíveis e abertos ao diálogo do que se pode imaginar no senso comum midiático, que frequentemente recorre à categoria ‘discurso do ódio’, a qual em nosso entendimento tem apenas valor político, mas não acadêmico”.

O artigo de Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco faz parte de uma coletânea publicada agora pela editora Boitempo, com organização de Esther Solano Gallego. Chama-se, aliás, “O Ódio como Política – A Reinvenção das Direitas no Brasil”.

Francamente de esquerda, a maior parte das contribuições desmente qualquer impressão de panfletarismo que se possa ter a partir do título.

A intervenção militar no Rio de Janeiro (estado em que as taxas de homicídio têm declinado) é analisada sem exaltação por Edson Teles. Num estudo estatístico, e muito eloquente, Marcio Moretto Ribeiro ilustra a polarização ideológica nas redes sociais.

Stephanie Ribeiro aponta o atraso do país no tema dos direitos da mulher, citando um texto de cem anos atrás sobre o aborto, que poderia ter sido escrito ontem.

A autora aponta a necessidade de uma autocrítica no atual movimento feminista: “Falar de assédio e cantadas nas ruas, por mais que compreenda um ponto muito importante [...] é mais aceito e palatável que falar diretamente de aborto”.

Religião, escola sem partido, antipetismo jurídico são outros assuntos que a coletânea aborda, de modo geral sem perder a calma e com ouvido atento para a divergência.

Assim, as fontes empresariais de financiamento dos grupos de direita são apontadas por um autor —e têm sua importância minimizada no artigo seguinte.

Sinal de que, em meio ao justificável desespero da esquerda, há gente mais disposta a entender e discutir do que —como tem sido o meu caso— arrancar os cabelos durante as noites de insônia.

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