Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho

Tal mãe, tal filha; tal pai, tal filho

Nas filhas, no cabelo e na forma física, as diferenças entre gerações desaparecem

Já não é de agora. Mas, com o crescimento da movimentação nos shoppings à medida que se aproxima o final do ano, o fenômeno pode ser verificado com mais facilidade.

Você vê duas belas mulheres se aproximando; seguem o mesmo estilo de roupa e de sapato; o cabelo está arranjado igual; os óculos escuros parecem da mesma grife. São gêmeas? São primas?

Não. Trata-se de mãe e filha. Uma imita a outra, compram roupa na mesma loja, o tipo físico e o rosto variam pouquíssimo.

Ilustração de André Stefanini para Marcelo Coelho de 14.nov.2018.
André Stefanini/Folhapress

Mérito, sem dúvida, dos produtos cosméticos, da academia e de uma eventual ajuda cirúrgica. A mãe de 45 anos parece ter 28, a menina de 16 já se comporta como se estivesse perto dos 30.

Até certo ponto, nada de estranho nisso. Parecer jovem é desejo de qualquer pessoa, de qualquer sexo. O interessante é que a adolescente siga tão de perto o modelo da mãe.

Meio século depois das agitações de 1968, uma parte da nova geração, ao que tudo indica, vai abandonando o antigo esquema da revolta e da diferença face ao que representavam seus pais.

Bom sinal, quem sabe. Como os pais já nasceram numa época mais liberal, é maior sua capacidade de se aproximar dos filhos; os seus próprios valores se transmitem de forma razoável, sem repressão.

Fala-se o tempo todo que as crianças estão crescendo “sem limite”. Talvez a contrapartida disso seja que muitos adolescentes —desde que não abandonados de vez por pais com excesso de atividades— tenham se tornado menos agressivos e implicantes.

Alguns especialistas também atribuem isso ao celular e à internet. A sensação de estar desocupado, preso dentro de casa, às voltas com as chateações inevitáveis do convívio familiar, foi substituída pela criação de uma bolha protetiva que mantém o adolescente distraído e sem tempo para discussões.

Será que o WhatsApp também não afasta o adolescente das drogas? É um vício sem maiores consequências físicas.

Como toda especulação sobre o comportamento humano, aqui também as coisas parecem contraditórias.

De um lado, pais e filhos se aproximam. O próprio gosto musical e de entretenimento deixou de se dividir em nichos etários; com o YouTube, os garotos de 16 anos escutam e apreciam as bandas que seus pais “curtiam” (epa!) há 20 ou 30 anos.

De outro lado, pais e filhos se distanciam. Em casa, veem-se menos do que nunca, às voltas que estão com seus relacionamentos virtuais.

Pode ser que a síntese entre proximidade e distanciamento se dê pelo mimetismo de que eu estava falando no início.

A mãe se veste como a filha porque ambas se igualam em concepções sobre o mundo, em gostos e atividades. Mas também a filha se veste como a mãe porque ambas, tão próximas em tudo, não se relacionam tanto.

O entendimento se dá pela forma exterior. Quanto ao que se passa no interior de cada uma, o mistério é maior —e talvez se passe pouca coisa, afinal.

Pois vivemos num mundo de constante exteriorização. Qualquer pensamento íntimo é imediatamente transmitido online. Qualquer desejo recôndito se traduz em consumo.

Voltamos ao shopping. Não é só que mães e filhas sejam parecidas. A moda é comprar conjuntos de roupas iguais, para a criança de cinco anos e para a mãe de 30.

Também há opções para pais e filhos —de sungas a ternos para ocasiões formais.

O velho Freud gostaria de ver essa reviravolta no conflito edipiano. Se a filha deseja o pai, como quer a teoria, e o filho deseja a mãe, como costuma ser mais lembrado, nada melhor do que adotar a aparência da mãe, ou do pai, nessa rivalidade inconsciente.

A rivalidade, entretanto, se dissolve em identificação. É clássico que as turmas de adolescentes se vistam do mesmo modo, prefiram as mesmas marcas de tênis e os mesmos cortes de cabelo.

Eis que a própria família se torna também tribal. A proibição do incesto —mais forte do que nunca no peso da pedofilia como pecado máximo em nossa cultura—, ganha um contrapeso simbólico na fusão de mãe e filha, pai e filho numa aparência só.

Claro que, ao lado disso tudo, há o componente de classe. O adolescente rico não se deixa fascinar como antes pelos ideais de esquerda; passa da ilusão de ser revolucionário para a realidade de ser “herdeiro”; ponho a palavra entre aspas porque adoto o vocabulário da revista Caras.

E é assim que, dentro do shopping, o igualitarismo triunfa.

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