Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho
Descrição de chapéu Natal

Chega a hora do Papai Noel sem fio

A tecnologia do laser e do bluetooth começa a se impor sobre os enfeites natalinos

Não acho bom alimentar muitas esperanças a respeito do futuro. Concentro-me em algumas coisas menos arriscadas —a medicina, por exemplo, tende sempre a melhorar.

Na vida cotidiana, sou ainda mais modesto. Tenho insistido, e não me decepcionei até agora, na perspectiva de um lar sem tomadas nem fios elétricos.

Aos poucos, isso vai ocorrendo; a energia solar chega aos poucos, e o bluetooth continua sua luta heroica contra o USB e os cabos de fone de ouvido.

Não que funcione sempre. Na impressora, já desisti. Trata-se de aparelho caprichoso e neurótico demais para que se confie num bluetooth. Caixas de som acordam quando querem. O computador as reconhece por vezes; outras vezes, fica magoado.

Uma boa notícia, ao que parece, foi divulgada no Facebook. Diz respeito às decorações de Natal.

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

Claro que todo fio, por mais curto que seja, enrola-se no que estiver por perto. Mas nenhum se compara ao das lampadazinhas de LED que enfeitam as árvores de Natal.

Ao longo de um ano inteiro de inatividade, é como se as luzinhas conhecessem um crescimento parasitário dentro da caixa de papelão.

Tudo me lembra a floresta que, por ordem da bruxa malvada, cresceu em torno do leito da Bela Adormecida, estendendo sinuosamente seus ramos e galhos malignos de modo a obliterar o instante encantado em que os olhos da princesa se encheriam de luz.

Toco naquele emaranhado impossível. Não é um enfeite de Natal: é uma coroa de espinhos. Reparo que também a árvore espeta um bocado.

Pois bem, o Facebook avisa —mas não sei a que preço, e com que taxas de importação— que o pesadelo terminou.

Os interessados podem comprar um poderoso projetor a laser, que salpica de estrelinhas infinitas o muro mais hostil, a fachada mais brutalista, a parede mais pagã.

Talvez seja preferível a fixidez das lampadazinhas azuis, a conceder-se no máximo um pisca-pisca de estrela em festa. O projetor de laser, no anúncio pelo menos, produz um mareio de cores fracas —já que a luz não vem delas mesmas. É mais uma dança a sair de um pequeno globo, mais próximo de uma discoteca que da imensidão astral.

Paciência: estamos livres dos fios.

Há muitos Natais, comemorei o surgimento das luzinhas chinesas, que substituíam com mais eficiência as velhas lâmpadas coloridas de 40 watts da minha infância.

Estas se penduravam como frutas nas árvores à frente das casas de uma cidade ainda sem muros. Havia nelas um adocicado triste de quermesse interiorana. Se fosse para seguir a mitologia dos quatro elementos, essas lâmpadas antigas correspondiam à terra, e ao fogo também.

As luzes de LED remetem ao reino da água —como toda eletricidade, aliás.

A ideia do fio, da tomada, da instalação elétrica, guarda um paralelo perfeito com a da torneira e do encanamento. Imagino um fluxo de elétrons, e mesmo os dois pinos de antigamente (vou ficando saudosista) correspondiam ao "frio" e "quente" da pia ou do chuveiro.

O projetor natalino nos leva a outra fase. Assim como o bluetooth, transporta-nos para a região imaterial e telepática do ar. Adeus, ganchos, preguinhos, racks e suportes. Adeus, encanamentos e postes. Adeus, escadas. Tudo flutua no éter —e mesmo Papai Noel, olhando melancólico para suas renas e seu trenó, prepara-se para o dia em que só precisará acionar seu mecanismo de teletransporte.

Por meio da transmissão molecular, visitará ao mesmo tempo todas as casas do mundo. O que, aliás, sempre foi sua obrigação. Ouvi dizer que foi organizada a recriação de um recital da cantora Maria Callas (1923-1977) com tecnologia holográfica.

Com o Papai Noel poderia ser feito o mesmo. Por que os shoppings não pensaram nisso? Seria paradoxalmente mais falso, e mais verdadeiro.

Nada mais triste —e não é preciso ser uma criança muito grande para saber disso— do que um Papai Noel "verdadeiro", daqueles de sentar no colo e pedir presente na fila do shopping center.

É o Papai Noel, mas é também um homem qualquer, entediado e coletivo, usando botas de plástico e, quase sempre, barba postiça.

O Papai Noel holográfico, impalpável e ilusório, será também o verdadeiro e único. Sua irrealidade será visível; sua magia deixará de ser grosseira para se apresentar como fato. Feito de ar e de sonho, seu milagre será real.

Depois disso, faltará apenas a holografia do próprio Jesus Cristo —sem a estamparia do sudário, sem barbantes e pregos a pendurá-lo na cruz. Mas aí estou tendo esperanças demais.

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