Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Marcelo Coelho

O encanto da música, sem falação barata

Livro de Vladimir Jankélévitch é lançado pela editora de Jacob Guinsburg

Morto no mês passado, Jacob Guinsburg fez muitíssimo pela cultura brasileira ao longo dos últimos 50 anos. Do professor e teórico de teatro, praticamente todo mundo que tem formação na área é seu devedor.

Mas quem é de ciências humanas o identifica, principalmente, como o responsável pela editora Perspectiva, em especial a coleção Debates —cujas capinhas brancas, que desde os anos 1970 vêm com uma linha colorida a identificar o campo específico de cada publicação, não envelheceram nada do ponto de vista estético.

A linha verde era para as ciências sociais, a amarela para a literatura, a vermelha para filosofia, a azul para comunicação. E lá vinham textos indispensáveis, como "Apocalípticos e Integrados", de Umberto Eco, os vários volumes de ensaios escritos por Anatol Rosenfeld, "Entre o Passado e o Futuro", de Hannah Arendt, que sei mais.

Ilustração de André Stefanini para Marcelo Coelho de 5.dez.2018.
André Stefanini

Era uma verdadeira universidade —e havia outra coleção de livros com formato maior, que também não se podia ignorar, a Estudos. Seu primeiro volume, o "Mimesis" de Erich Auerbach, funciona sozinho como um curso de literatura.

Em matéria de poesia, a Perspectiva publicou vários livros com as traduções de Haroldo e Augusto de Campos. A obra de Stéphane Mallarmé (1842-1898) pôde ser descoberta, ou redescoberta, no volume azul e preto que a editora lançou em meados de 1970.

De tudo isso, queria destacar uma empreitada ainda menos comercial (se isso é possível) do que todos esses lançamentos (felizmente tão bons que continuam a ser reeditados para atender a sucessivas gerações de universitários).

É a coleção Signos, dedicada à música clássica. Vinha até com disquinhos compactos de vinil.

Seus livros se destacam por evitar aquilo que é tão comum quando se fala de música: o recurso à literatice, à efusão sentimental que não explica nada.

Claro que o preço disso é ter de entrar um pouco em detalhes técnicos, ilustrando alguns pontos com trechos das partituras musicais.

O estudo originalíssimo de Willy Corrêa de Oliveira sobre Beethoven ("Beethoven: Proprietário de um Cérebro") resolvia esse problema com um disco de Caio Pagano, interpretando a sonata "Appassionata" de acordo com a análise do autor. Surgia um Beethoven quase "de vanguarda", capaz de jogar com silêncios, densidades, dissoluções.

Na mesma coleção, saiu agora um livro que, além de ser muito bom em si mesmo, tem importância por ser uma rara tradução brasileira de um filósofo dos mais interessantes --e simpáticos-- do século 20.

Nascido na França, de pais russos, Vladimir Jankélévitch (1903-1985) escreveu muito sobre música, mas não só. Seu "Paradoxo da Moral" saiu pela Martins Fontes, e a editora Papirus lançou, há 20 anos, suas "Primeiras e Últimas Páginas".

Falta traduzir muita coisa, como seu estudo sobre "A Ironia" —muito informativo e histórico, indo dos gregos aos românticos— e suas incursões muito pessoais pelo mundo do "Quase-Nada" e do "Não-Sei-Quê".

É um filósofo das sutilezas, das nuances, das indefinições —e, por isso mesmo, especialmente apto a falar sobre alguns compositores em particular, que representam para ele esse ideal do paradoxo, do eternamente inconclusivo, do fugitivo: Gabriel Fauré (1845-1924), Ravel (1875-1937) ou Chopin (1810-1849).

Com tradução e notas impecáveis de Clovis Salgado Gontijo, "A Música e o Inefável" representa uma espécie de manifesto estético de Jankélévitch em defesa daquilo que, na música, não pode ser reduzido a nenhuma outra coisa.

Só por metáfora, diz ele, podemos descrever a música como se fosse um discurso, uma retórica coerente, uma exposição "de pensamento". Não é que Jankélévitch tenha uma abordagem irracionalista do fenômeno.

A música é "expressiva", por certo... Mas o que ela "expressa" não sabemos. O "expressivo inexpressivo", diz Jankélévitch, está no âmago da música, "que não é um Dizer, mas um Fazer".

As paixões foram o território da música durante o romantismo; mesmo assim, o mecânico, o arabesco, o puramente gracioso, o repetitivo e o imóvel também são música.

Inocente ou selvagem, ela será misteriosa como uma máscara, mas nunca pode assemelhar-se a uma careta; noturna ou diurna, graciosa ou rústica, será complexa ou simples, mas seu significado não se esgota —tanto que podemos ouvir a mesma peça muitas vezes.

É de outra realidade, enfim, além do inteligível, que estamos falando. Também o livro de Jankélévitch foi feito para ser lido e relido.

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