Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Com o passar dos anos, faróis se apagam

Como outras vítimas do avanço tecnológico, as 'sentinelas do mar' perdem função

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O recife de Eddystone fica perdido e invisível em algum trecho do canal da Mancha e ao longo dos anos foi responsável por incontáveis naufrágios, como o do navio Constante, no Natal de 1695.

Era tempo de construir um farol por lá; mas a única rocha que aflorava à superfície do mar tinha metade do tamanho de uma quadra de tênis.

Idealizada pelo britânico Henry Winstanley, a obra durou quatro anos, com o material sendo transportado até o recife em viagens de barco a remo, que demoravam 12 horas de ida e volta.

Os trabalhos estavam a meio caminho quando um aventureiro francês (Inglaterra e França estavam em guerra) sequestrou o construtor.

Levado à presença de Luís 14, Winstanley se recusou a trabalhar para o inimigo.

O rei poderia tê-lo executado na hora; foi magnânimo. Mandou-o de volta à Inglaterra, para que continuasse a construção do farol. "Estou lutando contra a Inglaterra, mas não contra a humanidade", disse Luís 14.

Nada mais apropriado a um soberano conhecido pelo apelido de Rei Sol do que se revelar amigo dos faróis.

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

Mas a construção de Winstanley não durou muito; subestimara-se a força das tempestades e, naquela época, o grosso da estrutura de um farol costumava ser feito de madeira.

Outro farol, no mesmo lugar, foi roído por cupins e terminou incendiado. Cinquenta anos depois, uma torre de pedra se tornou capaz de iluminar o caminho dos veleiros.

Durou um século, até que a erosão do mar comprometeu suas fundações. Em 1882, foi feito um quarto farol, que persiste até hoje.

Outra erosão está em curso, a do progresso tecnológico. Fiz referência, outro dia, à desaparição iminente das chaves —objeto que subsiste inalterado há milênios; os cartões magnéticos também vão sumindo, e em prédios novos você entra em seu apartamento digitando uma senha.

A grande maioria dos faróis vai se mostrando supérflua, graças ao GPS e não sei o que mais.

Acaba de ser publicado na Inglaterra um lindo livro contando a história dos faróis. Reproduzi de "Sentinels of the Sea", de R.G. Grant, o caso de Winstanley e do farol de Eddystone.

O livro de Grant não traz quase nada de fotografias —que podem ser lindíssimas—, mas é cheio de ilustrações detalhando os projetos de engenharia de faróis alemães, ingleses, noruegueses ou franceses construídos ao longo de dois séculos e meio.

O capítulo que se refere às técnicas de iluminação é dos mais fascinantes.

Uma simples fogueira encimava o mítico farol de Alexandria —que, medindo o equivalente a 30 andares decorados com esculturas e frisos, estava entre as sete maravilhas do mundo antigo. Só foi destruído no século 14.

Também utilizavam fogueiras os faróis romanos, dos quais sobrevive até hoje o de La Coruña, na Espanha. Na Idade Média, foram-se todos apagando; só alguns mosteiros os preservaram, assim como as bibliotecas.

Livros e faróis coincidem por acaso, aliás, numa referência feita por Grant a uma família escocesa especializada na sinalização marítima: o pai e os irmãos de Robert Louis Stevenson dedicavam-se a essa atividade.

Vieram as velas de sebo e as lamparinas de óleo de baleia; mais tarde, as de petróleo. O grande progresso surgiu com os espelhos e as lentes parabólicas, destacando-se aí a perfeição minuciosa das facetas de cristal desenhadas por Augustin-Jean Fresnel (1788-1827).

Fresnel não é desconhecido dos iluminadores de teatro: até hoje existe um tipo de refletor que leva o seu nome.

Como os mosteiros medievais e os castelos, diz Grant, os faróis são hoje protegidos por associações em defesa do patrimônio histórico e encontram funções alternativas como centros culturais, lugares para instalações artísticas e locais de meditação.

Um farol no Oregon serve como cemitério vertical, abrigando cinzas dos mortos a uma taxa até que módica, se considerarmos a poesia da coisa toda.

Os mortos, de um lugar igualmente já sem vida, enviam sua luz intermitente a um destinatário anônimo.

Em algum ponto da costa, ou quem sabe em alto-mar, uma pessoa sozinha recebe a comunicação silenciosa, incompreensível, de um sinal que atesta —mentirosamente, agora— a presença humana no meio da noite.

"Estou aqui", diz o farol. "Eu também", diz quem o avista no escuro. Mas não se trata de uma resposta. Não houve diálogo; sabe-se apenas de uma presença, de um testemunho —um apelo, talvez, que se troca entre duas solidões, gratuitamente. Já é o bastante.

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