Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Glória dos salões de embarque

No desconforto de massa, o viajante internacional ainda se acha um milionário

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Tudo melhora —ao menos no mundo da técnica. Geladeiras, carros e televisões de 1960 dão pena se comparados aos de hoje. Até os óculos deixaram de enfear as pessoas, com o fim dos fundos de garrafa.

Acho estranho que, com tudo isso, os aviões não se tenham tornado mais velozes. Uma viagem à Europa demora as mesmas 10 ou 12 horas de 1975.

E são as horas mais insuportáveis, mais apertadas, mais famintas e mais infelizes do que antes. É grande o estímulo para comprar passagens na classe executiva, a um preço que corresponde praticamente a uma extorsão sob ameaça de tortura. Ou paga o dobro, ou será martirizado na econômica.

Ao menos os privilegiados da classe executiva poderiam, imagino, aceitar outro negócio. Com aviões diferentes, viajariam num voo nem tão confortável —só que rapidíssimo.

Houve o Concorde, é verdade. Não deu certo, mas foi há 40 anos. Ninguém se mobilizou para inventar coisa melhor?

Seja como for, a Viagem de Avião Internacional (ponho em maiúsculas mesmo) continua cercada de um status imaginário e sem sentido.

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

Entre num aeroporto brasileiro qualquer. Pode até ser Congonhas, dedicado aos voos domésticos. Não sei se é impressão minha, mas a maior parte das pessoas assume na hora um ar mais pretensioso.

Ainda que o preço das passagens tenha se popularizado e ainda que na fila existam estudantes de chinelo ou trabalhadores rurais, muitos narizes se empinam.

O "passageiro" está mais disposto a reclamar seus próprios direitos, reais ou inexistentes, do que o último dos quilombolas. Sim, deve ser uma questão de arrobas.

Ele bufa: a porta de embarque mudou, o voo foi cancelado sem explicação. Sem explicação? Tenho a minha. Como estava meio vazio, daria prejuízo para a companhia aérea --os poucos passageiros serão "reacomodados" (ô, palavra!) no outro, até o limite da lotação.

Certo, as reclamações procedem. Mas nem sempre, acho eu. Não faz muito, vi um brasileiro indignar-se com o padrão da classe executiva, nos primeiros instantes a bordo. "Nunca mais! Nesta companhia, nunca mais!", prometeu ele, antes de aceitar o champanhe de boas-vindas.

Todo passageiro internacional se sente importantíssimo. Talvez porque se sinta em risco, entregando a vida aos azares do piloto. Ou porque mereça mais em troca do sofrimento que lhe impõem.

Penso em outras razões, um pouco mais longas de explicar. A primeira é que a classe média alta brasileira conhece pouquíssimas experiências de cunho coletivo. O médico é particular, o carro idem; ônibus e trem, nunca na vida. Fila, no máximo, a do teatro.

Desse modo, o portão de embarque já nos conduz à realidade do rebanho. É a igualdade sob opressão --e, pior, com um travo de competitividade.

Cresce o desejo de atrair as atenções para si, de afirmar-se como indivíduo: não à toa, muitos aparecem de chapéu.

A mala! Vão confundir a minha? O carrinho da comida! Vai me esquecer? Coisa mais nojenta, essa máscara de oxigênio.

Gritaremos todos, no pânico, a uma só voz. A equipe de resgate não se lembrará de mim. Quanto ao oceano, vasto em seu negrume de viúvo, haverá de confirmar meu definitivo anonimato.

O passageiro empina o nariz, portanto. Décadas de propaganda o convenceram de que viajar pela Braniff ou pela Cruzeiro significava experimentar os últimos refinamentos de um chef estrelado no "Guia Michelin", fumar charutos de meio metro, ter atendidos todos os caprichos de um sultão —incluindo-se nisso, "ça va sans dire", o harém espetacular das aeromoças.

O incrível é que a ilusão persiste. A passagem barateou e a cabine é sórdida, mas a ala internacional dos aeroportos alimenta a fantasia. Não sei se o duty-free compensa tanto assim —sei que as lojas são milionárias.

Dior, Chanel, Burberry's e congêneres exibem seu máximo fulgor. Não é um dourado comum, palaciano, vulgar; há ciência na luz acobreada, no fundo de ébano, na ausência completa de ornamento.

Não é apenas o mundo do luxo —coisa de patetas como Luís 15 ou Napoleão 3º. O rigor reto do vidro substitui o bricabraque do cristal, o vazio da loja quase que elimina a mercadoria, e a sobriedade da vitrine exclui até mesmo a necessidade da informação. Só o logotipo.

Para que algo mais? É a Chanel. Você "já sabe".

Sabe mesmo? Hora de entrar no avião. Já em Paris, Roma ou Nova York, humilhações sem conta o esperam. "Uan informeichom, plísi..."

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