Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Novas barbearias e ressurreição do giz

Em 2018, uma espécie de passadismo cool trouxe marcas ao cotidiano da cidade

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Os fatos políticos foram do conhecimento de todos. Mas o ano de 2018 tornou visíveis, também, algumas modificações na vida cotidiana que talvez valha a pena registrar.

A moda dos food trucks, por exemplo, parece ter retrocedido. No auge, tinha algo de contraditório, não sei bem.

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

Em tese, tudo deveria resumir-se a uma Kombi parada perto de uma faculdade ou estação de metrô, pronta a oferecer um gênero só de comida a quem esteja de passagem.

Deve ter havido excesso de oferta. Em São Paulo, foi comum encontrar verdadeiros estacionamentos de food trucks, como praças de alimentação ao ar livre. Compareci a um ou dois festivais dessas viaturas em áreas livres de shopping center.

Talvez se tratasse de comida muito cara ou incomum, sem poder para substituir o velho hot dog prensado ou o milho fervido.

Há algo de pretensioso nos food trucks, mas não a ponto de impedir, acho, a disseminação que eu esperava. Acho que esta não aconteceu.

Não conheço estatísticas, mas vi o número de bancas de jornal diminuir muito ao longo do ano. As mais importantes reduziram seu horário de funcionamento. Claro, se as revistas desaparecem, e as próprias editoras entram em recuperação judicial, o futuro das bancas está praticamente selado.

Estive em Nova York há alguns meses, e fora as lojas em aeroportos e estações de trem, era quase impossível achar uma banca.

Na década de 1970, quando os cabelos compridos eram regra, não sei quantas barbearias tiveram de fechar pela diminuição da clientela.

Este ano presenciou o fenômeno inverso em São Paulo. Surgiram barbearias de luxo, com o clássico poste giratório vermelho e branco dos filmes americanos. Entrei numa pensando que era lanchonete; talvez fosse, ao mesmo tempo.

São como parques temáticos da masculinidade hollywoodiana: uma Harley Davidson decorativa convive com alvos para jogo de dardo, tacos de beisebol e pôsteres de John Wayne.

Oferecem café expresso, ou cappuccino —não mais o habitual resto de garrafa térmica em copinhos de plástico.

Talvez algumas dessas novas barbearias também contem com um barman; ao menos uma dose de "Bourbon" puro, a ser ingerida de uma virada, pode constar como cortesia da casa.

Toda essa machice disfarça, naturalmente, o que está em curso de fato. A moda é usar barbas cada vez mais elaboradas, com bigodes retorcidos em espiral, ao estilo da Paris do Segundo Império. Suíças austríacas e mesmo bigodes em "W", como os do kaiser Guilherme 2º, impuseram-se sobre o rosto dos homens mais jovens, sem distinção de hétero ou homossexualidade.

É como se uma parcela dos gays abandonasse o visual adolescente e andrógino para efetuar, digamos, a vingança do tataravô reprimido em sua preferência pelos costumes vitorianos.

Nessa linha, o "steampunk" parece encarnar não a simples nostalgia pelo século 19, mas uma espécie de recuperação dos tempos em que o capitalismo industrial guardava espaço para o pensamento utópico.

É como se um escocês de 1850 se entusiasmasse loucamente pelas promessas do vapor e do petróleo, de Darwin e de Marx, imaginando-se como um ser humano reconstruído, dotado de órgãos artificiais —impossíveis de moldar pelas atuais técnicas da clonagem, mas produzidos com arame, cobre, couro e ferro.

A barba antiquada, assim como os cortes de cabelo cada vez mais assimétricos, dá origem então a um "passadismo revolucionário" que parece contestar a "modernidade reacionária" de nossos empreendedores liberais.

Lucram as barbearias, sem dúvida. Tornam-se salões clandestinos de beleza, pondo à venda linhas e mais linhas novas de cremes, loções e vaselinas heterossexualiformes.

Os serviços são anunciados, também de modo retrô, em lousas pretas caligrafadas a giz.

Esta é mais uma novidade que vim a perceber em 2018: todo restaurante ou lanchonete agora dispõe de um artista competente para traçar cardápios decorativos na parede.

Nada dos velhos "inhoque" e "comercial" pintados de branco por cima de um painel da Coca-Cola. O modesto e caseiro sistema da lousa preta se renova, como quem não quer nada, em sofisticações de designer gráfico e comic-art.

Mais uma vez, é o passadismo que se torna "cool". O tradicionalzão se recicla em esbelteza e insolência, com Dickens falando ao celular e a princesa Isabel vestindo calças de couro.

Ah, o número de crianças pedindo esmola na rua voltou também a aumentar neste ano. Dickens está com tudo.

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