Magro, com a cara comprida e sobrancelhas irregulares, o ator inglês Benedict Cumberbatch é soberbo quando se trata de encarnar personagens esquisitos e inteligentíssimos. Foi assim na série "Sherlock Holmes" da BBC —sem dúvida a versão mais neurótica e intratável do célebre detetive.
No telefilme "Brexit", que estreou nesta semana na HBO, Cumberbatch assume o papel de outro tipo de gênio. Mais inchadão e lento, entregue a meditações num quarto escuro e adepto do uso da bicicleta, ele faz o papel do marqueteiro Dominic Cummings.
Cummings foi responsável pela vitória de uns poucos políticos nacionalistas de direita no plebiscito que terminou aprovando a ruptura do Reino Unido com a União Europeia.
Apenas alguns aventureiros conservadores, como Boris Johnson, e alguns gatos pingados radicais, como Nigel Farage, do minúsculo partido Ukip, defendiam o brexit. O filme de Toby Haines os retrata como pouco mais do que palhaços.
Mas Dominic Cummings, por razões obscuras (provavelmente uma funda amargura com a política tradicional), leva o jogo a sério.
Há sem dúvida uma grande dificuldade nesse tipo de filme, que é a de representar os processos mentais de um personagem taciturno e, feitas as contas, bastante chato.
Passam-se bons minutos de silêncio, por exemplo, antes de Cummings atinar com a palavrinha que daria eficiência mortal ao seu slogan em favor do brexit.
Inicialmente, o lema contra a União Europeia era simplesmente "take control": algo que representava tanto o desejo de maior independência frente aos centros de decisão sediados em Bruxelas, quanto um apelo à ilusão de que, com o plebiscito, o povo comum poderia se sobrepor ao complexo político-financeiro de Londres.
O marqueteiro se levanta no meio da noite com a palavra mágica na cabeça: "back". "Take back control". O termo ecoava a nostalgia reacionária de tempos mais felizes, antes que imigrantes, feministas, gays e militantes dos direitos humanos impusessem (essa é a crença da direita, lá como aqui) sua "ditadura" sobre as "pessoas de bem".
Fosse apenas isso, a criatividade de Cummings estaria no mesmo plano que a de tantos outros profissionais da empulhação eleitoral. O interesse histórico de sua figura, e de sua campanha, está em outro ponto.
Deu-se, ao que tudo indica pela primeira vez, a aliança entre um agrupamento político e as técnicas contemporâneas de manipulação digital.
É a inauguração do sistema que, graças aos dados de empresas como a Cambridge Analytica, contribuiria para a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e de Bolsonaro no Brasil.
O momento mais interessante de "Brexit" é o do encontro entre Dominic Cummings, marqueteiro digital de um novo tipo, com seu equivalente no campo adversário —o experiente Craig Oliver (Rory Kinnear).
As técnicas habituais de Oliver —como o acompanhamento de um punhado de eleitores em grupos de discussão— são anuladas por um verdadeiro "grupo de discussão" ao vivo e sem controle, capaz de evoluir por si mesmo e de dispensar toda necessidade de amostragem estatística: o Facebook.
Conforme a campanha pelo brexit cresce, Oliver se desespera. Uma informação falsa é repetida à exaustão pelos participantes de seu grupo de controle.
Contrariando todas as regras, o marqueteiro entra na sala de discussão e contesta diretamente seus convidados.
É como se ele —justamente um marqueteiro!— se transformasse de repente em paladino da verdade fatual. Os antigos controles da opinião pública já não funcionam. O marqueteiro perde o controle de si mesmo --e dos próprios grupos de controle.
Sim, alguém "tomou o controle" em seu lugar.
Quem? Certamente, os que dispõem de mais dados e dinheiro para multiplicar eletronicamente as opiniões que lhes interessem. Mas não só. As opiniões, os slogans, os memes e as mentiras podem nascer de qualquer lugar —e terão mais impacto quanto mais extremas e absurdas.
Do rádio para a televisão, e desta para o Facebook, houve mudanças de fase histórica. Se a vociferação de Hitler ou Mussolini dera lugar ao sorriso doméstico de Kennedy ou Ronald Reagan, agora, não é a voz, não é o rosto de Trump o que mais conta —e sim suas mensagens de texto.
Mas nem Trump nem Bolsonaro, muito menos algum marqueteiro, podem se gabar de ter o processo sob seu controle. A máquina funciona de modo inerentemente instável, ao sabor de quem possa financiar a estridência, o desequilíbrio, a maior maluquice que vier pela frente.
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