Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Parabéns a você, êi, nesta data..., êi

Aniversários e pedidos de casamento contam com o entusiasmo dos garçons

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Fazer aniversário nunca foi o meu forte. Passada a infância, sempre fiquei sem jeito ao convidar pessoas para celebrar a minha própria existência. E todo mundo, é claro, fica constrangido na hora do parabéns.

O que fazer quando cantam? Bater palmas também? Não faz sentido, ao meu ver —e aproveito para expressar, de passagem, outra irritação minha: de algum tempo para cá, todo debate, mesa-redonda ou evento deu de terminar com os participantes aplaudindo junto com a plateia.

Logo isso acontecerá no fim de concertos e peças de teatro --que, talvez só no Brasil, são sempre ovacionadas de pé.

Estranhamente, aplaudir a si mesmo acaba sendo visto como um sinal de modéstia. Depois de uma longa sessão para discutir a arte contemporânea ou os rumos da democracia, os debatedores aplaudem, não o seu próprio desempenho, imagino, mas quem sabe a mera realização do evento, a participação do público, seja lá o que for.

Antes de cortar o bolo, ficar quieto é a melhor opção. Os convidados aproveitam, sem dúvida, para prolongar o desconforto do aniversariante. Há o "com quem será", e uma novidade (a provar que estou ficando velho mesmo): a de gritar "êi!" no contratempo da cantoria.

Ilustração
André Stefanini

Não era assim antigamente. A tendência do mundo, como se sabe, é acelerar sempre, e sincopar cada vez mais.

O que não deixa de ser uma metáfora para a própria passagem dos anos.

Mas o problema do aniversário não para por aí. Fugindo da tradicional festinha, muita gente prefere comemorar com amigos num restaurante. Já era chato quando o garçom, depois de uma conspiração insidiosa, trazia o bolo e as velinhas.

Agora, os garçons também cantam parabéns, mais alto que os amigos, e com gritos de "êi" dignos de uma tropa de fuzileiros navais americanos.

Conforme o restaurante, três ou quatro surtos desse tipo ocorrem a cada refeição. Não chego a ver a cara do aniversariante, porque me afundo no prato antes dele.

Trata-se, conforme outro termo da moda, de "compartilhar" a alegria de Fulaninho ou Beltraninha.

É comum que eu receba mensagens de alguém querendo "compartilhar" a notícia de que recebeu um prêmio, digamos, da Associação Santista de Corretores de Imóveis, ou uma medalha da Sétima Jornada de Ciclismo do Vale do Ribeira.

Espero que não se esqueçam de mim quando ganharem na Mega Sena.

O "compartilhar" nos remete naturalmente ao Facebook, onde já me vi desejando feliz aniversário para pessoas que mal conheço. Fazemos, na verdade, o mesmo papel dos garçons do Outback.

Não é só que o privado, o pessoal e o íntimo se tornaram públicos com a internet e os reality shows.

O mundo público precede o pessoal; o que se divulga a quatro ventos é, muitas vezes, um afeto que nunca existira antes.

E não é a realidade que se torna virtual. É a internet que toma corpo em três dimensões. Ídolos do YouTube, como o humorista Whindersson Nunes (procure e verá), fazem turnês em teatros do Brasil e do exterior depois de viverem bastante tempo como personagens de vídeos caseiros.

Nos restaurantes —e até em estádio de futebol, como vim a saber nesta semana— , a "facebookização" deixou de se limitar aos aniversários.

Pedidos públicos de casamento ocorrem com frequência. Quem precisa da revista Caras?

O anúncio da boda, com músicos contratados, anel de brilhantes (mas recomendo a zircônia) e noivo de joelhos, está ao alcance de qualquer câmera de celular.

A velha festa de noivado, com o pai da noiva de cenho franzido e o rapaz suando de nervoso, ficou para os fãs de Nelson Rodrigues. A cerimônia se transforma, o que não é ruim, em festa à fantasia, em patuscada de estudantes do Largo São Francisco.

Antes eu pensava que, com o tempo, gravatas, vestidos de noiva, becas de formatura viessem a se extinguir, por obra da informalidade e da banalização. Claro que diplomas e casamentos perderam o valor que tinham 50 anos atrás.

Mas a coisa é mais dialética. Depois da tese e da antítese, vem a síntese ou, mais sofisticadamente, a "negação da negação". Negava-se a cerimônia, agora se nega o fim dela.

Ela é reencenada como brincadeira, como espetáculo. Evito o clichê: não digo que seja uma farsa. O noivo de joelhos no restaurante, não duvido, ama muito a sua noiva.

A paixão perde seu sofrimento, sua gravidade, para transformar-se em evento. Só espero que a felicidade deles também não termine se resumindo a isso.

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