Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Brasileiros em outras terras, de armas na mão

Documentário mostra vocação militar como busca de pertencimento

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Com uma filha pequena, morando numa região conflagrada do Rio de Janeiro, e vivendo de descarregar caixotes de cerveja, Bruno parece ter bons motivos para tentar a vida em outro país.

Sua escolha é espantosa. Vai para a França, alistar-se na famosa Legião Estrangeira. A força militar, que congrega gente de todas as partes do mundo, ganhou fama nos velhos filmes de aventura de Gary Cooper.

Ninguém mais distante do capa-e-espada que o cineasta brasileiro José Joffily, cujo filme "Soldado Estrangeiro" foi exibido no festival É Tudo Verdade. Como em outros documentários do diretor, aborda-se aqui uma vocação profissional.

"O Chamado de Deus" mostrava os sonhos de aspirantes ao sacerdócio e "A Vocação do Poder" acompanhava a campanha de alguns candidatos estreantes para a Câmara dos Vereadores do Rio.

Em "Soldado Estrangeiro", também dirigido por Pedro Rossi, a coisa é certamente mais estranha, mais difícil de entender. Se os três personagens do filme querem uma vida de combates e tiroteios, por que não ficar por aqui mesmo?

Ilustração de André Escarma para Marcelo Coelho de 17.abr.2019.
André Stefanini

Bruno chora ao ter notícias da filha por WhatsApp. Na Legião Estrangeira, tem de ficar um mínimo de cinco anos sem voltar ao Brasil. Explicando sua decisão ao pai, ele tem um argumento interessante. "Aqui no Jardim Coreia [este o nome da sua comunidade] é mais perigoso do que lá..."

Não se trata, portanto, de buscar o perigo por prazer. Sim, Bruno queria servir o Exército aqui, mas foi dispensado por excesso de contingente. Por que não tentar na PM, no tráfico, na milícia?

Talvez a procura seja por algo justamente mais ordeiro, mais regular, mais... civil. O objetivo não seria exatamente ganhar uma arma para atirar nos inimigos, mas sim ter um lugar certo em que ficar. Algo como uma identidade —mas uma identidade impessoal, anônima, sem perguntas.

"Ser alguém" parece constituir igualmente o motivo que levou Felipe a se alistar entre os "marines" americanos. Buscava o "status" de soldado; usa o termo em inglês, para assinalar a diferença de seu significado face a seu uso habitual em nossa língua.

Pelo que entendi, o "stêitus", em inglês, seria equivalente a um título de cidadania; uma situação de pertencimento ou uma garantia de ser reconhecido —o oposto daquilo que o próprio Felipe chama de "não ser ninguém".

Esfaqueado no Afeganistão por um menino de sete anos, durante uma busca na casa de supostos talibãs, Felipe passou a depender de drogas analgésicas. Terminou excluído dos marines e seu documento de dispensa assinala que isso de forma "não honrosa".

Com isso, ele tem dificuldades em conseguir emprego e voltou a "ser ninguém". Pior que isso, perdeu o que tinha seus laços —com a família, com os amigos e consigo mesmo ficaram rompidos.

A disciplina militar, assim como a dependência química, para não falar do desemprego, do expatriamento e da própria recuperação da saúde mental, criaram uma espécie de anulação de tudo —passado e futuro não existem mais para Felipe.

Entre o sonho da Legião Estrangeira e o despertar vazio numa cidade americana, o terceiro personagem do filme está em pleno serviço ativo, no Exército de Israel. Mário passa os dias patrulhando estradas e casas palestinas; fala português com um leve sotaque, e explica as vantagens de sua situação.

Seus estudos serão pagos pelo governo, ele tem descontos e facilidades na vida cotidiana, e plena cidadania. Talvez por questões de segurança, talvez por discrição pessoal, nada diz sobre seus desejos de defender o país ou de engajar-se em atos de bravura.

Seus colegas de farda parecem, como ele, crianças ingênuas. Também as primeiras cenas de treinamento na Legião Estrangeira mostram Bruno correndo, metralhadora em punho, como se brincasse.

A filmagem de José Joffily privilegia os momentos de silêncio, com o rosto desses três homens em close e de perfil. Não se vê neles violência, raiva ou desejo. A câmera parece esperar pelo sentido que possam dar às próprias vidas. Não há resposta, exceto a de que cada um está, sozinho, às voltas com sua própria humanidade.

O festival de documentários É Tudo Verdade chegou neste ano à sua 24ª edição, contando com apoio do Itaú Cultural e da Sabesp.

Sobrevive-se —mas sem Banco do Brasil, Petrobras e congêneres, fico pensando se não seria hora de grandes empresas, sei lá, Volkswagen, Samsung, Postos Ipiranga, começarem a se preocupar. O mundo da metralhadora e do coturno certamente não precisa de financiamento.

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