Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Guardanapos, pregos, urtigas, relógios

Poemas do alemão Jan Wagner chegam ao Brasil e fazem dançar o mundo dos objetos

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Os poemas de Jan Wagner são bem difíceis de entender. O melhor é destacar alguns trechos, algumas imagens, que são mágicas no que têm de surpreendente e de verdadeiro.

Numa viagem costeira, o poeta lembra que as autoridades lançaram um alerta sobre tubarões, e que, na baía, a balsa onde ele estava "encontrou a sua sombra, a baleia".

Guardanapos são como "uma frígida garça de origami" ou têm "o orgulho de navios de quatro mastros cruzando as mesas".

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

O sabonete branco que diminui com o uso, dia a dia, segue as fases da lua.

A aranha d'água, num riacho, é uma "pinça miúda" que "agarra as nuvens".

Outro poema evoca uma noitada entre amigos, em que cada um bebia aguardente pelo gargalo de sua garrafa: era uma "fanfarra de vodca". Depois, todos saem para a praia; é uma noite de tempestade. "Cada relâmpago nos arrancou as trevas do corpo."

E aquela noite era "um balão de ar içado em suas cordas de chuva".

Não sei se existem muitos poemas sobre pregos na parede. Jan Wagner fala de um, em que se penduravam sobretudos, chapéus e molduras, "até que o esquecíamos, daquele olhar/ duro ainda ali, quando já tínhamos/ nos mudado e cidade e casa e rua/ já haviam desaparecido".

O tema da viagem e da imobilidade está muito presente em "variações sobre um tonel de chuva", coletânea dos poemas desse autor alemão, nascido em 1947. Foi publicada este ano pela editora Jaboticaba, com tradução e posfácio de Douglas Pompeu.

A edição bilíngue permite, na medida do possível, avaliar a inventividade do tradutor. Como explicado no posfácio, Jan Wagner usa formas poéticas tradicionais, como o soneto e a sextina, mas libera-as de qualquer convencionalismo.

Suas rimas, por exemplo, são por vezes mais sugeridas que reais: "geräusch" (ruído) e "garage", por exemplo. É um poema sobre urtigas.

Douglas Pompeu aproveita a ideia da "ausência de ruído" com que a planta rasteja, atrás da garagem, rumo a um terreno baldio, para rimar "garagem" com "sem alarde age" --solução que traz, oculta, a sensação do "ardido" que a urtiga produz.

O tradutor termina com uma proeza verbal: "no jardim inteiro urtiga/ urge sobre urtiga, urdida com nada mais que urtiga".

É pena que, em outros momentos, o leitor brasileiro encontre problemas de compreensão inexistentes no original.

Jan Wagner descreve um quadro do holandês Pieter Codde (1599-1678). É um daqueles retratos de personagem importante, todo de preto, com uma enorme gola branca rendilhada encostando no cavanhaque louro.

O homem segura um relógio. "Mal posso apanhá-la", diz a tradução, "como se ela se tivesse pousado nas pontas dos meus dedos (...) como uma borboleta de brilho estranho".

Ela? É que "relógio", "Uhr", em alemão, é substantivo feminino. Talvez o tradutor tenha desejado identificar "relógio" com "hora", mas como a poesia de Jan Wagner tem vários mistérios por si mesma, não custava ajudar um pouco.

"Piano de calda", em vez de "piano de cauda", também é de doer.

Seria bom que uma próxima edição viesse com notas. É preciso procurar no Google o sentido de "oki" (um peixe ornamental), "abrunho" (nossa popular ameixinha), "roaz" (tipo de golfinho) ou "salgadeira" (um simpático arbusto comestível).

O esforço vale a pena.

Guardanapos, pregos, lençóis, um coala, uma bola de tênis esquecida na quadra: Jan Wagner segue a linha de Rainer-Maria Rilke (1875-1926) e de Francis Ponge (1899-1988) ao fazer poesia sobre "objetos", sobre "coisas", deixando o lirismo pessoal nas entrelinhas.

A beleza disso não está simplesmente em nos deixar entrever universos de semelhanças, associações e enigmas em cada fragmento do cotidiano. No caso de Jan Wagner, as metáforas parecem obedecer ao sentido original do termo grego, que é o de "transporte", o de "levar a outro lugar".

O prego, fixo na parede, é como um centro que se irradia para todos os quadrantes. O relógio, preso no quadro entre os dedos do seu dono, é uma borboleta que pode fugir a qualquer momento. A plantinha comestível, enraizada no solo, é uma imigrante espanhola ou palestina.

Num "ensaio sobre os mosquitos", Jan Wagner fala de um enxame de letras que fugiram do jornal; diz que os insetos têm "minúsculos corpos de esfinge", são "a pedra de Rosetta, sem a pedra".

Incidentes à parte, pousaram bem no Brasil. É uma ótima notícia.

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