Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Tarsila renova seus enigmas

Cruzando influências, pintora traduz o Brasil numa língua que é, e não é, a nossa

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Faz sucesso a exposição de Tarsila do Amaral no Masp, e com bons motivos. Há uma grande quantidade de obras —quase cem—, lindamente distribuídas em paredes com as cores suaves que a pintora usava na sua fase pau-brasil.

Os textos reproduzidos ao lado de cada quadro são de ótima qualidade, sem jargão, e até com toques de valoração crítica, positiva ou negativa —estimulando quem vê a fazer seus próprios julgamentos.

Quadros raramente vistos, alguns notáveis, foram obtidos de coleções particulares. Destaco um autorretrato de vestido azul, de 1923, com toques orientalizantes nas frutas que pendem no fundo, perto da orelha da figura, como num eco dos brincos dourados de outra imagem da pintora.

Ilustração para Marcelo Coelho de André Stefanini de 29.mai.2019
André Stefanini

“Lagoa Santa”, de 1925, mostra as clássicas casinhas de interior de paisagens mais conhecidas —só que não tão nítidas, não tão “programáticas” em sua simplicidade. 

O efeito é menos bom, mas se vê compensado pelas árvores cortadas, quase como braços e pernas de ex-votos, no primeiro plano.

De Van Gogh e Gauguin passamos aqui a uma possível influência de cenas da Primeira Guerra Mundial, como as pintadas por John Nash (1893-1977), por exemplo.

Alguns quadros não muito conhecidos misturam o estilo pau-brasil, intencionalmente ingênuo com favelinhas limpas e trenzinhos de brinquedo, e a crueza antropofágica de fins da década de 1920.

De modo geral, as fases de Tarsila se sucedem com nitidez. A década de 1930 representou, em todo o mundo, uma virada artística para temas sociais. “Segunda Classe” e “Operários” são as grandes obras desse período, contrastando em qualidade com tentativas bem ruins, como “Trabalhadores”, de 1938.

Entre esses extremos, uma bonita “Maternidade”, do mesmo ano, usa os tons de Clóvis Graciano, Teruz e Portinari.

O ímpeto “animal” de Tarsila foi se perdendo com o tempo; meio sem razão, alguns quadros terminaram fazendo experiências com um tipo de composição em diagonais que lembra a influência antiga do futurista Gino Severini (1883-1966).

Ainda assim é muito bonita uma paisagem de 1950, em que também as pinceladas de Cézanne deixam sua marca.

Influências, inspirações, lembranças: eis o que não falta na pintura de Tarsila. A simplificação geométrica de Léger (1881-1955) se junta ao instinto obscuro do “douanier” Rousseau (1844-1910), e mesmo a distorção extrema do “Abaporu” pode ter-se alimentado do maneirismo de Parmigianino (1503-1540).

Trata-se de uma estranha originalidade. É como se Tarsila estivesse muito perto de imitar alguém, mas conseguisse ser ela mesma apesar de tudo.

Claro que a cultura brasileira lutava —e um pouco ainda luta—contra uma tendência “centrífuga”. Sair do país, viajar para fora, era desejo e rotina para a elite cafeeira e hoje pega em cheio a classe média.

No caso de Tarsila, a solução foi muito particular. Em meados da década de 1920, ela se comprometeu a retratar um Brasil em que conviviam fazendolas e locomotivas. Mas não fez isso como se pertencesse a essa realidade: o olhar vem de fora; nem o moderno nem o rural são seus.

Na poesia de Oswald de Andrade, o efeito era de estranhamento, de comicidade, de absurdo. Isoladas de um contexto complicado e contraditório, as cenas do cotidiano brasileiro surgiam como um boneco de mola pulando da caixinha.

Não há humorismo na pintura de Tarsila; a realidade não está em choque com o olhar da artista. Seria possível dizer que ela não estava pintando a realidade, mas uma “ideia da realidade”; os seus quadros são a representação de uma representação, a pintura (culta) de uma pintura infantil ou popular.

“A Negra”, de 1923, causa ainda mal-estar e dá pano para mangas para os estudiosos no catálogo da exposição. Os lábios enormes chocam pelo que têm de estereotipado; de racista, dá para dizer.

Mas, novamente, não é bem a pintora que se pode acusar disto ou daquilo. Tarsila parece estar pintando com os olhos de um estrangeiro. São os olhos de um viajante, também, os que identificam frutas brasileiras e bichos da floresta —como algo a “traduzir” numa linguagem sem fluência, difícil, construída passo a passo, forma a forma, cor a cor.

As pessoas se juntam para tirar selfies perto de “Abaporu”. Como “A Negra”, trata-se de uma esfinge, renovando o mesmo enigma. Seu idioma é o português do Brasil —mas não sabemos o que diz.

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