Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Descrição de chapéu

No futuro, todos irão usar tornozeleira

Monitoramento eletrônico da saúde e do desempenho de funcionários avança nos EUA

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“O seu trabalho tem sido excelente”, diz o chefe do escritório ao subordinado, numa tirinha de Dilbert.

“Mas eu vou pôr no relatório que foi um desempenho fraco”, continua ele, “para já deixar registrado no caso de termos de te mandar embora”.

A injustiça do caso é bastante clara, e foi denunciada recentemente por um especialista americano. Ele se chama Stephen Mattingly e é da Universidade de Notre Dame. A palestra dele está no YouTube.

Como evitar que, por inveja ou antipatia pessoal, os chefes avaliem negativamente seus funcionários? A tecnologia, celebra Mattingly, já tem mecanismos para consertar essa injustiça.

Trata-se do “Projeto Tesserae”, desenvolvido por professores de oito universidades americanas. Em teoria, é um método para avaliar com mais objetividade o desempenho de um funcionário.

Ótimo, não? Mas veja só como funciona.

O empregado recebe um emissor eletrônico, que no vídeo parecia uma pulseirinha eletrônica, e deverá usá-lo 24 horas por dia. O dispositivo está conectado a duas centrais de bluetooth, uma no escritório, outra na casa dele.

Com isso, a empresa pode monitorar diversos dados, como sono, batimento cardíaco, pressão e mesmo aumentos no peso e no consumo de calorias.

Ilustração
André Stefanini/Folhapress

O empregado deve recarregar a bateria disso na hora do banho, único momento do dia em que está autorizado a tirar a coisa do corpo.

Não é o bastante.

Ele deve baixar um aplicativo no celular que envia à empresa todos os seus dados de navegação —o mesmo funciona no laptop.

Assim, não importa muito se ele trabalha em casa ou no escritório. Ficarão sabendo o quanto ele trabalha e o quanto enrola conferindo emails pessoais, conversando com amigos, vendo piadinhas ou vídeos pornográficos.

O comportamento dele no Facebook e em outras redes sociais, como o LinkedIn, também é vigiado.

Pronto! Acabaram-se as horas de improdutividade na internet, as poças de ineficiência de um trabalhador ao longo do dia, as falsas desculpas de resfriado ou dor de cabeça. A firma pode avaliar inclusive se você está estressado demais —e, quem sabe, concluir que você não tem o perfil desejado para a função que exerce.

Dá para perceber o quanto esse “Projeto Tesserae” é assustador. Cada funcionário de escritório logo vai ficar com inveja da tornozeleira eletrônica dos condenados na Justiça.

Vai ver que eu estou imaginando coisas —a ideia toda parece vir de uma ficção científica barata. Não consigo acreditar que os empregados de uma firma se submetam a essa invasão de privacidade, a essa perfeita escravidão eletrônica.

No entanto, o experimento científico do professor Mattingly parece ir de vento em popa. No YouTube, ele relata que o novo método já foi testado com quase 700 voluntários.

Como assim? Será que as pessoas recrutadas não se sentem mal com esse monitoramento? Sim, reconhece o professor Mattingly. Resistiram ao projeto, em especial por questões de privacidade.

Como foi possível convencê-las a uma vigilância constante, durante meses?

A resposta é simples: dinheiro. Em troca de uma merreca (US$ 25 na primeira semana, com os ganhos aumentando quanto mais tempo você ficar), muita gente se dispôs a colaborar com o projeto.

Ainda que não seja muito, dá para compreender que alguém se interesse. Mas daí para passar o resto da vida, ou o tempo que durar seu emprego, com o gerente sabendo até quantas horas de sono você tira por noite... Será possível que iremos entrar numa nova etapa da servidão contemporânea?

As dívidas que todo mundo tem —no crediário, no carro, no cartão de crédito— já diminuem muito a capacidade de protestar, de entrar em greve, de mudar de vida. Nos Estados Unidos, ainda é pior: anos depois de terem ganho o seu diploma, jovens adultos ainda estão enforcados com o financiamento da faculdade.

Calma, não é tão mau assim, diz outro idealizador do projeto. O professor Pino Audia, de New Hampshire, diz que o monitoramento pode trazer vantagens para o trabalhador. “Ficará mais fácil provar objetivamente que você é um bom empregado”, diz ele. E ninguém precisa ser obrigado a usar; só quem quiser.

Imagino, numa empresa, o que acontecerá com quem não quiser... Mas o pensamento liberal tem dessas coisas. Sem sindicatos, sem leis, tudo é livre escolha do empregado nas suas relações com o empregador. E, de tanto liberalismo, voltamos à escravidão.

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