Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Descrição de chapéu

Um estranho cartaz no Espírito Santo

No tsunami de estupidez que toma conta do Brasil, alguns erros são bem-vindos

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Recebi na semana passada um desses emails com fotos bizarras que circulam na internet. Era de outdoor em Vitória, fazendo propaganda de uma organização religiosa.

Tinha uma citação bíblica: “Mãe, este é seu filho; Filho, esta é sua Mãe”. João 19: 26-27. Para explicar melhor, o cartaz ainda dizia: “Mãe de JESUS - Representação de pureza de Nossa Senhora”.

A frase se referia a uma imagem, mostrada à esquerda do cartaz. Tratava-se de um quadro clássico. A Virgem Maria, bela e serena, era retratada da cintura para cima, com as mãos cruzadas em sinal de pudor.

Ao fundo, uma paisagem de névoa azul evocava montanhas indistintas, algum bosque distante nos caminhos da Toscana, uma ponte vaga e diminuta. O rosto da Madona se impregnava de resignação, sabedoria e graça.

Um momento. Virgem Maria? Madona? Confira-se a imagem do outdoor.

Era a “Mona Lisa”!

Pois é.

Ilustração de André Stefanini para a coluna de Marcelo Coelho de 14.ago.2019.
André Stefanini/Folhapress

Dentro do verdadeiro tsunami de ignorância, fanatismo e brutalidade que se vive no Brasil, o cartaz do Grupo Lei de Deus é coisa de menor importância. Mas é preciso errar muito numa pesquisa do Google para confundir a Gioconda com Nossa Senhora.

Não serei eu a atirar nesses religiosos uma primeira pedra. De certo modo, o quadro de Leonardo Da Vinci se impôs pela beleza; eis que a Mona Lisa foi santificada.

É um passo e tanto, quando se pensa nas imagens que a Gioconda costumou sugerir a alguns de seus comentadores. Talvez o mais famoso deles tenha sido Walter Pater (1839-1894).

A Gioconda representa, diz Pater, tudo aquilo que em milhares de anos os homens desejaram. “Por sua beleza passaram todas as doenças da alma; todos os pensamentos e experiências do mundo se inscreveram e se moldaram nela.”

A Mona Lisa “é mais velha que as rochas que a rodeiam; como o vampiro, ela morreu muitas vezes e conhece os segredos do sepulcro; mergulhou em mares profundos; traficou estranhas teias com mercadores do Oriente; foi a mãe de Helena de Troia e foi, como Sant’Ana, a mãe de Maria; e tudo não foi para ela nada mais que um leve som de flautas e de liras”.

Para Walter Pater, a “Mona Lisa” expressava o desejo, ardente e impuro, de uma vida perpétua, feita de carne sensual e experiência terrena —um conhecimento da santidade e do pecado ao mesmo tempo.
Santa e esfinge, anjo e demônio: por que não?

Termina sendo simpática, assim, a burrada dos religiosos de Vitória. A Mona Lisa foi absolvida de seus mistérios vampirescos, de suas intenções inexpugnáveis. Depois de milênios de crimes e de sinas, eis que se transformou na Virgem.

Podemos também ver as coisas da perspectiva oposta. Na medida em que fomos deixando a Idade Média para trás, as imagens dos santos foram ficando mais humanas.

Nas galerias de arte europeia, as primeiras salas mostram sempre aqueles Cristos de cara amarrada e olhar fixo, quase egípcio, que se achatam contra um fundo só dourado. Eram simples imagens de culto, serviam só para você rezar em frente delas.

Foi a partir do século 13 que as imagens da Virgem e do Menino foram se humanizando —no início, com os pequenos gestos da criança estendendo a mão para tocar nos dedos ou na borda do vestido da mãe. O fundo dourado deu lugar a um ambiente doméstico, e a auréola dos santos, assim como as asas dos anjos, foi diminuindo de tamanho até sumir.

Na Ilustríssima de domingo passado, a escritora Veronica Stigger escreveu um lindo artigo sobre a “Anunciada”, quadro de Antonello da Messina pintado no final do século 15.

Já estamos num mundo inteiramente humano —a Virgem não tem halo nenhum em volta da cabeça, e não se vê nenhum anjo a avisá-la que será a mãe do Salvador.

Também aqui a modelo tem um “quase sorriso” no rosto, diz Veronica Stigger. O sorriso lembra o quadro de Leonardo. Mas há mais carne nos lábios da Anunciada, e o rosto, de modo geral, parece mais popular, mais inclinado a algum impulso humano, que o da infinita Mona Lisa.

Não há mais como rezar diante de um retrato assim. Nem por isso a imagem deixa de comunicar a grandeza de uma mensagem religiosa: a de que, em todo ser humano, há algo de sagrado, de único, de universal.

Eis a religião, purificada de seus fanatismos, de suas perseguições, da ignorância de suas milícias e seus esquadrões da morte —numa palavra, é a religião redimida; uma religião que, graças à arte, foi salva de seu próprio inferno.

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