Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Descrição de chapéu

'Bacurau', ou bolsonarismo às avessas

Alimentando ilusões, filme é mais sintoma de desespero do que de lucidez política

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O cinema não era num bairro de esquerda, mas muita gente terminou aplaudindo “Bacurau”, filme de Juliano Dornelles e Kleber Mendonça Filho que estreou na semana passada. O mesmo aconteceu, se bem me lembro, com Aquarius, deste diretor.

São obras de “resistência”, sem dúvida, diante do pesadelo de violência e bizarrice que estamos vivendo no Brasil. Mas o sucesso de Kleber Mendonça Filho me parece mais um sintoma de desespero emocional do que de inteligência política.

“Aquarius” apresentava uma senhora de classe alta, inchada de paternalismo de classe, com discos de Maria Bethânia e pontas de maconha à disposição nas suas muitas horas vagas, como se fosse uma heroína na luta contra o grande capital.

Ilustração
André Stefanini/Folhapress
 

O novo filme pretende mergulhar fundo na realidade das classes populares. Bacurau é o nome de um vilarejo no interior de Pernambuco, cuja população é ameaçada por um misterioso conluio entre um político corrupto, uma gangue de dementes racistas e, tudo indica, proprietários de terra locais.

Há toques excelentes: dois personagens do Sudeste brasileiro, por exemplo, tentam explicar a estrangeiros que são brancos, e moradores de uma região “muito rica”. Sentem vergonha, naturalmente, de pertencer ao mesmo país que os mestiços e negros do semiárido.

Em “O Som ao Redor”, de 2012, era a classe média alta do Recife que se mostrava igualmente detestável ao decidir, numa reunião de condomínio, pela demissão de um velho porteiro que se mostrava incapaz de entregar direito os exemplares da revista Veja aos assinantes do prédio.

Situado num futuro próximo, “Bacurau” mostra, de passagem, um noticiário televisivo em que se anuncia a retomada de execuções públicas no vale do Anhangabaú, em São Paulo. 

Dentro da lógica da ficção científica, e de toda a fantasia inconsciente que vem emergindo nesta época de genocidas, o detalhe é brilhante e aparece sem chamar exageradamente a atenção sobre si mesmo.

Com muito talento, e na medida do quase insuportável, mantêm-se inexplicados os pressupostos do enredo. A tensão cresce na mesma medida em que episódios desconexos e delirantes se acumulam.

Se você ainda não viu o filme, é melhor que pare de ler por aqui. Se viu e adorou, também não garanto que valha a pena continuar com este artigo.

Para fazer a crítica de “Bacurau”, de um ponto de vista político, é preciso mencionar segredos que só se
revelam lá pelo fim do filme. Peço desculpas e tento não carregar nos “spoilers”.

Não acho impossível que, algum dia, venha a se realizar a previsão de “Bacurau”. Alguma agência de turismo no Texas talvez esteja mesmo planejando oferecer a seus clientes a diversão proposta no filme. Malucos supremacistas, com a regra de só utilizar armas “vintage”, desembarcam no interior brasileiro em
busca de uma experiência privada de limpeza étnica.

Nosso horror ao reacionarismo da era Trump se vê saciado no filme de Dornelles e Mendonça Filho.

Mas eles não podem dizer, claro, que “tudo é culpa dos americanos”. Afinal, Bolsonaro e seus sócios também apostam na retórica nacionalista quando falam da Amazônia. Imagina-se, então, uma aliança entre latifundiários locais e os ianques caçadores de cabeça. Estes serão encarregados de fazer um trabalho sujo pelo qual, aparentemente, capangas brasileiros pediriam um preço alto demais.

Ora essa. Reencena-se, a pleno vapor, o mito do brasileiro puro e inocente. A comunidade de Bacurau, perseguida pelos estrangeiros, não tem traidores nem divisões internas. Se há algum brasileiro calhorda, é político ou é do sul.

Corações ao alto! O Brasil vencerá. Põe-se em funcionamento outro mito. Os cidadãos de bem de Bacurau recorrem a um criminoso profissional, otimamente caracterizado por Silvero Pereira num “look” de traficante meio gay, meio louco.

À matança dos americanos, responde-se com matança e meia. Eis o Brasil vingado, e parte da plateia aplaudindo o derramamento de sangue organizado pelo assassino local.

Horrorizar-se diante do massacre de Canudos é uma coisa. Outra coisa, que nada tem de progressista, é 
confiar que uma reedição de Canudos possa ter sucesso.

Penso como reagiríamos diante de um filme afegão em que o Taleban é o último recurso de uma população simples e legal.

Aqui, estamos num mundo de Valesca Popozuda —“tiro, porrada e bomba”—, construído sobre as ruínas da esquerda, num bolsonarismo de sentido contrário.

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