Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Lorotas oficiais e sopradores de apito

Filme 'Segredos Oficiais' mostra caso real de resistência a governo mentiroso

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Meu gênero de filme preferido não é propriamente o drama, o suspense ou o documentário. Pode ser qualquer um; o principal, para mim, é que a história tenha uma ou várias decisões dificílimas de tomar.

Pouca gente viu, acho, “Eye in the Sky”, thriller de 2015 com Helen Mirren no papel de uma oficial do exército britânico. Sua “decisão de risco” —este o título em português— consiste em bombardear ou não um reduto de terroristas no Quênia.

Drones mostram o que acontece dentro do esconderijo. Os fanáticos estão afivelando seus coletes explosivos. Identifica-se que há uma cidadã britânica entre eles. Pior —na rua ali perto há uma criança vendendo comida.

Ilustração minimalista em linhas. O fundo é todo preto e há um apito em branco, o apito tem uma chama vermelha em sua ponta, o que remete a uma arma
André Stefanini/Folhapress

Atacamos ou não? O tempo começa a correr; autoridades têm de ser consultadas. Há o ministro tal, o embaixador fulano, o general sicrano, e também o governo dos Estados Unidos —que, esse, não tem dúvida: é preciso bombardear o local, doa a quem doer.

Todos têm excelentes argumentos. Como espectador, minha tendência é concordar com cada um deles alternativamente. O suspense é enorme.

Estamos no polo oposto dos filmes de ação convencionais, que costumam realizar desejos de vingança e morticínio alimentados previamente. Aqui, o que conta é investigar que tipo de desejo temos.

“O que você quer de fato?”, pergunta o filme. Por definição, é um gênero mais democrático do que o blockbuster, feito para satisfazer as expectativas que ele próprio criou.

Outro filme do diretor de “Decisão de Risco”, Gavin Hood, está para estrear em São Paulo. “Segredos Oficiais”, com Keira Knightley, conta a história real de Katharine Gun.

Ela trabalhava como tradutora no serviço secreto britânico, pouco antes de começar a guerra do Iraque, em 2003.

Na época do filme, o presidente Bush ainda estava tentando convencer a ONU de que o ditador Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa e tinha relações com a Al Qaeda. Era mentira. 

A guerra ainda não tinha começado quando Katharine Gun tem acesso a um email dando conta do jogo sujo dos Estados Unidos para obter apoio na ONU, junto a países menos poderosos. 

É um documento sigiloso —e, como toda funcionária do serviço secreto, ela teve de prestar um juramento de silêncio. Mas não se conforma. 

Não será a única decisão que a protagonista terá de tomar —e Keira Knightley me parece grande candidata ao Oscar por seu desempenho.

Ela atua como se não soubesse realmente o que irá dizer no momento seguinte. É impulsiva, mas não é louca —e as consequências de cada passo seu podem ser muito mais amedrontadoras do que acreditamos possível num estado democrático.

Como se sabe, mas eu não sabia tanto assim, os controles do Estado sobre a vida dos cidadãos —barrando até mesmo seu acesso à Justiça— tornaram-se imensos depois do 11 de Setembro.

Talvez não seja um alívio, mas a quantidade de informações privadas que a tecnologia tornou disponível para os governantes exige, ao mesmo tempo, um grande número de pessoas para administrá-la.

E a própria tecnologia multiplicou o acesso para que os “whistleblowers” (literalmente, os sopradores de apito) como Katharine Gun e, mais tarde, Chelsea Manning divulguem suas descobertas. Os WikiLeaks e, aqui, as revelações sobre os conluios de Sergio Moro são casos a assinalar.

Ficamos preocupados com o acesso dos governos e empresas aos segredos da vida particular de cada um. Mas não há dúvida de que os segredos dos próprios governos se tornaram mais passíveis de exposição. 

Em que medida esse jogo se equilibra? Ainda que os computadores estejam entupidos de fake news e que milhões de pessoas se disponham a acreditar em qualquer absurdo, talvez não seja otimismo pensar que, fora da periferia lunática, um centro de gravidade básico subsista, na velha opinião pública, na política tradicional e nos meios de comunicação. 

Apesar da estridência à nossa volta, a lei dos grandes números talvez anule, também no que se diz e no que se ouve, os disparates e as mentiras dos extremos em cada ponta do espectro.

O problema, mas isso está longe de ser uma novidade trazida pela tecnologia, é que a verdade só costuma ser revelada tarde demais. A mentira, dizem, tem pernas curtas —mas é quem dá a largada, diante dos aplausos e gritos de guerra da plateia.

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