Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Mais disciplina, rapaz!

Máquina de gastar o tempo inutilmente, a internet apresenta sua própria solução

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Cansado de ficar zanzando durante horas na internet? Não digo que me canse, mas o tempo perdido me enche de culpa. 

Há vícios em toda parte, e comigo acontece o seguinte. Gosto de ouvir programas de música clássica no computador. Isso me prende ao aparelho, porque em geral uso fones de ouvido com fio. Até aí, seria apenas um fundo sonoro para minhas atividades normais, como escrever textos, pagar contas, responder emails.

Não é assim que começa o vício. A coisa piora porque, se quero me concentrar no que estou ouvindo, procuro coisas descompromissadas para me ocupar no computador.

Colagem com fundo azul onde pessoa com escafandro de mergulho faz sinal de ok coma mão enquanto por dentro da máscara, até a altura do nariz, está cheio de água.
André Stefanini/Folhapress

O site Pinterest (não sou fã do Instagram) fica passando diante de meus olhos imagens de países, cidades, obras de arte, atrizes, modelos e algumas outras atrações menos confessáveis. Há também capas de livros antigos, que então me conduzem ao site da Estante Virtual, onde a preços por vezes baixíssimos posso me entupir de velhas edições de bolso.

Gasto mais tempo do que dinheiro nesse tipo de coisa —terminando por perceber que não ouvi direito o programa que tinha sintonizado, e que estou com mais uma pilha de livros que não irei ler, dado o fato de que perco muito tempo na internet.

Como dizia o velho Marx, a humanidade nunca se coloca questões que não pode resolver. Se a frase me parece totalmente falsa no que diz respeito à história dos povos, há razões para aceitá-la no campo do consumo pessoal.

Vi agora que a internet traz consigo sua própria solução. O site Cold Turkey, por exemplo, promete rigores e sofrimentos comparáveis aos de quem parou de tomar drogas da noite para o dia —o nome evoca o mal-estar da ressaca ou da síndrome de abstinência. “Aguenta essa, Mark Zuckerberg”, orgulha-se a página inicial do programa.

A ideia é te ajudar na busca de mais disciplina para seu trabalho. Você bloqueia o site em que está viciado —e, garantem os programadores, é impossível trapacear; o programa não permite arrependimentos.
Bloqueou, nunca mais.

Eles sabem que não é bem assim; há maneiras de deixar “destravado” o seu próprio interdito. Mas eles também sabem que todo mundo começa o dia, a semana, ou o ano com boas intenções e firmeza de propósitos.

“Agora vai!”, diz o viciado, depois de já ter tentado outros bloqueadores.

Há fórmulas menos radicais. O site Rescue Time oferece um programa que mede o tempo despendido em cada site frequentado. Pode ser útil: perdemos completamente a noção, conforme o que estamos fazendo. 

A contagem dos minutos possibilita uma divisão em áreas —trabalho real, comunicação com amigos, sites inúteis, compras… 

Há como programar alertas e, mais importante, como reservar um horário específico para não fazer nada de importante.

Passamos então a outro “aplicativo”, ou seja lá que nome tenha. O Pick Four propõe que você estabeleça metas de produtividade (para seus estudos ou leituras, por exemplo) e confia na sua disposição para a autocrítica.

Mais que isso, você pode compartilhar seus sucessos ou fracassos com um grupo de amigos. Seria o equivalente dos Vigilantes do Peso ou dos Alcoólicos Anônimos —enquanto o Rescue Time, o medidor de tempo, funciona como os contadores de calorias (de que já fui entusiasta) disponíveis no celular.

E assim vamos progredindo. O clássico perfil psicológico do burguês vitoriano —duro acumulador de capital, capaz de uma autodisciplina comparável à que exigia dos subordinados— dissolveu-se na obesidade e na abundância da sociedade de consumo.

O mundo contemporâneo, que já não mais provê emprego fixo e não sabe o que fazer com o excesso de mão de obra, retoma como conto de fadas a velha ficção liberal do indivíduo autônomo, 
responsável pelo próprio êxito ou insucesso na vida.

Vende-se a ideia do “empreendedorismo”, da pequena iniciativa, do trabalho flexível, do bilionário que começou com um computadorzinho no quarto de dormir. Mas os bilionários reais, os donos da Amazon e do Facebook, dependem de quem começa no computadorzinho dentro do quarto, mas não sai do quarto nunca mais.

Disciplina, rapaz, disciplina! A culpa é sua. 

Se estiver difícil, pague uma mensalidade que bloqueamos os sites que você não consegue bloquear sozinho. Claro, você pode se arrepender depois. Sem problema. Sabemos bem, caro consumidor, que o arrependimento é sua especialidade.

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