Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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O ser humano, feito, desfeito e refeito

Nas esculturas de Tony Cragg, pedra e bronze compõem uma dança livre e organizada

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Uma das esculturas mais importantes do século 20 foi feita pelo futurista italiano Umberto Boccioni (1882-1916). Seu título é um pouco pretensioso —“Desenvolvimento de uma Garrafa no Espaço”— mas corresponde fielmente ao que vê o espectador.

Não se trata de uma reprodução certinha de uma garrafa feita em bronze, mas de um objeto que se descasca, como uma pele de laranja em espiral. 

O dentro e o fora, o oco e o cheio, o gargalo e a rolha se formam a partir de uma base, em que dois pratos se entrelaçam num só, como anéis de uma cebola. A escultura, claro, está imóvel, mas sua forma giratória nos convida a andar em volta dela, como se apenas nosso movimento pudesse proporcionar uma visão integral da garrafa.

Composição em preto e branco. A imagem central é composta por perfis de rostos alinhados que começam no centro, metade vai para a esquerda e metade para a direita. O fundo é quadriculado.
André Stefanini/Folhapress

O que não acontece, é claro: de cada ângulo que possamos escolher, a garrafa está incompleta, em formação.

Um exemplar dessa escultura pode ser visto no Museu de Arte Contemporânea da USP, junto com outra obra espantosa de Boccioni, “Formas Únicas de Continuidade no Espaço”, feita em 1913 (um ano depois da “Garrafa”).

Aqui, é uma pessoa andando, sem rosto, talvez com elmo de conquistador espanhol, que surge retratada em bronze. Mas o metal se desprega de suas pernas, como que se a vontade do caminhante fosse mais forte do que a matéria que o moldava. 

Há, sem dúvida, muito de imponência guerreira nessa escultura, que não deixava de se referir aos antigos modelos de praça pública.

Ao mesmo tempo, Boccioni rompia com a ideia do monumento fixo, congelado na reverência histórica e na submissão do espectador. Cada coisa está incompleta, viva, em formação. 

Como nos quadros cubistas, o objeto retratado se multiplica e se desdobra.

Mas uma garrafa de Picasso ou de Juan Gris se decompõe em facetas, em planos frios e cristalinos, em cinzas e brancos de gelo. A multiplicação feita por Boccioni se faz a quente, no mole, no metal fundido.

Imagine-se agora o mesmo tipo de procedimento, só que feito sem a intenção direta de retratar alguma coisa real. Um “desenvolvimento no espaço” que não é de uma garrafa ou de um ser humano, mas apenas de um bloco de mármore, de um pedaço de madeira.

Esta é a impressão produzida pelas esculturas do britânico Tony Cragg, nascido em 1949. O Mube (Museu Brasileiro da Escultura) está com uma exposição das obras dele, com entrada grátis, até fevereiro de 2020.
As obras mais impressionantes, como a altíssima peça prateada que fica fora do museu, parecem um pouco o modelo de uma enorme coluna vertebral, só que torcida e deslocada para fora de seu eixo. Não, não parece que alguém está sentindo dor nessa operação. Tudo flui, na plasticidade feliz de um metal que dança.

Novamente, vamos girando e girando em volta de cada obra. Por vezes, surpreendemos um rosto de perfil —como aquelas máscaras derretidas em alguns quadros de Salvador Dalí, que se sustentam com muletas, querendo pingar num solo de deserto.

Mas não é mais o humano “desfeito”, o homem “impossível” de Dalí, nem mesmo o homem já morto, substituído por algum ídolo primitivo e mecânico, que se vê nas esculturas surrealistas de Max Ernst.

É um ser humano em formação; às vezes, numa massa compacta de colunas curvas, outra escultura de Tony Cragg deixa adivinhar um joelho, uma coxa, uma canela. 

Poderíamos pensar em formas anatômicas despedaçadas, mas é o contrário: tudo está em fluxo, e é como de uma espécie de acaso genômico que nasce —que está nascendo—um ser humano.

A festa probabilística do DNA talvez seja, creio, o segredo de outra escultura notável de Tony Cragg, feita com milhares de dadinhos de brinquedo. Dobras, banhas, lavas de dados se organizam num objeto feito de muitos outros: uma esfera perfeita aparece, um pino de boliche parece dominar a cena, como a cabeça de um homúnculo —ou será o cabo de um carimbo?

Um outro carimbo, feito de vidro, parece derreter-se como gelo sobre cinco ou sete almofadas. É possível que mesmo aqui prevaleça o otimismo fundamental de Tony Cragg: o mecânico, o ordenamento, o esforço imobilizador não são capazes de suprimir tudo o que, ao desfazer-se, se refaz, se reforma, se conforma, se reorganiza e nasce de novo.

Só uma escultura na exposição foge desse modelo “orgânico” de matéria em fusão. É um grande e meticuloso edifício de garrafas e copos empilhados. A garrafa de Boccioni, mais uma vez, se multiplica. Mas cuidado: esse milagre de equilíbrio, a qualquer momento, pode quebrar-se para sempre.

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