Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Filmes estranhíssimos de Seijun Suzuki ressurgem no Instituto Moreira Salles

Diretor disparava quatro filmes de gângster por ano, na máquina de entretenimento dos estúdios Nikkatsu

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Estranheza e perplexidade à vista. Nesta semana e na próxima, o IMS Paulista exibe uma retrospectiva do cineasta japonês Seijun Suzuki (1923-2017), figura bem menos conhecida do que seu contemporâneo Akira Kurosawa (1910-1998).

Uma das razões para isso é que Kurosawa já fazia filmes artísticos e sérios desde meados do século 20, ganhando o Leão de Ouro de Veneza com “Rashomon”, em 1951. 

Enquanto isso, Seijun Suzuki disparava quatro filmes de gângster por ano, na máquina de entretenimento dos estúdios Nikkatsu. 

Um dos filmes na mostra do IMS, “A Marca do Assassino”, deu o pretexto para que a produtora o demitisse em 1967. A Nikkatsu logo iria entrar em falência de qualquer modo, mas o fato é que “A Marca do Assassino” era uma loucura, que nem mesmo um estúdio em boas condições financeiras teria paciência de engolir.

Ilustração em preto e branco. No centro, uma silhueta da cabeça de uma pessoa sem o rosto, nela há apenas óculos e uma padronagem de borboletas estampa as lentes. A padronagem de borboletas está no fundo da imagem também.
Publicada nesta quarta-feira, 22 de janeiro de 2020 - André Stefanini/Folhapress

Também de minha parte, esse filme policial poderia ser candidato a uma crítica negativa. Da história, entende-se pouquíssimo. Além disso, “A Marca do Assassino” está repleto daquelas estranhezas típicas dos filmes japoneses. 

Alguns exemplos. Tomado pelo terror, um ajudante do pistoleiro começa a pular e dançar comicamente no meio da estrada, como num teatro de marionetes. Há também outro hábito estilístico que sempre me incomodou na maior parte dos filmes japoneses. É assim: 

O guerreiro empunha a espada e faz uma pose antes de enfrentar o inimigo. Fica parado. A câmera faz um corte. O espectador espera ver o monstro, mas não. A câmera mostra o mesmo guerreiro, só que de outro ângulo. Outro corte. O guerreiro agora aparece de perto. 

A ideia, imagino, é privilegiar a ênfase, mais do que a narrativa. É como se! O diretor! Estivesse colocando! Pontos! De exclamação antes que a luta! Comece finalmente.

Esqueci essas implicâncias ao ver “A Marca do Assassino”. A história pode ser bagunçada, mas, quanto aos cortes, há efeitos geniais. Você simplesmente não tem ideia de como será a cena seguinte. A câmera vai de surpresa em surpresa. 

Só um exemplo. Como é praxe no começo das produções antigas, vemos os créditos escritos em letras brancas sobre um fundo preto. 

A apresentação termina —mas aí a câmera mostra uma cena noturna, em que só as letras de um anúncio luminoso se veem na escuridão. Dos créditos para a história “real”, a passagem se faz sem sentir.

Fora essas coisas, o filme tem as três mortes mais imaginosas e malucas a que já assisti. Superam o assassinato por meio de um carregamento de cereais, e aquele do binóculo com uma agulha envenenada que entra pelo olho da vítima, em histórias que não direi quais são.

“A Marca do Assassino”, em todo caso, pertence à primeira fase de Seijun Suzuki. Uma década depois, ele reapareceu com filmes sofisticados, belíssimos e ainda mais estranhos. Da Trilogia Taisho, o mais compreensível é o último, “Yumeji” (1991), uma fantasia em torno das muitas mulheres de um pintor.

Maridos enciumados e eremitas diabólicos se cruzam entre gueixas e melindrosas “moderninhas” —e há poesia em toda parte. “Não posso fazer o seu retrato”, queixa-se o pintor. “Por quê?”, pergunta a moça.

“Porque não sei no que você está pensando.” Ela sorri. “Você só vai me pintar se dormir comigo, não é? É assim que os artistas são.” O pintor responde: “Se eu dormisse com você, te entenderia ainda menos”.

Nesse filme, e mais ainda em “Zigeunerweisen” e “Kagerô-za”, os outros dois da trilogia, não sabemos quem é fantasma e quem está vivo, o que é real e o que é delírio dos personagens.

Alguém sonha ter escrito uma carta —e seu destinatário a recebe de verdade. Os mortos aparecem de barco. Falam num disco de baquelite. Reaparecem loiros.

Com histórias que se passam na década de 1920, a trilogia oscila entre o mundo moderno e o Japão tradicional. Um estudioso de filosofia alemã recebe mensagens de seu amigo do além —que lhe pede de volta um disco emprestado.

Um maravilhoso teatro tradicional desaba em silêncio. Em outro momento, é uma boate moderna que se arruína.

O teatro volta na opereta pop “A Princesa Guaxinim”, em que colonizadores portugueses são excluídos de cena no final felicíssimo de um conto de fadas ridículo, irônico, pagão. 

É uma loucura. Mas vale a pena não ficar de fora.

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