Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Mais do que produtos, o capitalismo atual procura vender 'experiências'

O consumo contemporâneo não pode mais oferecer simplesmente uma coisa que você leva para casa

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Compro livros pela internet na maior parte das vezes e, quando vou a livrarias, sempre me assusto com a insuficiência do que é oferecido.

Ninguém precisa ser guru do marketing para perceber que isso obriga a transformar as livrarias em centros culturais, de modo que o livro, a exemplo da pipoca do cinema, seja comprado como uma espécie de subproduto do curso, da palestra ou da exposição que se realizou naquele dia.

Tudo bem quanto às livrarias, portanto. Mas o que acontecerá com as lojas de rua? Ainda acho difícil comprar roupas e sapatos pela internet, mas o comércio virtual começa a devorar isso também.

No Reino Unido, o ano de 2018 viu 3.300 lojas de grandes redes de varejo fechando as portas, com mais de 62 mil pessoas demitidas. Em 2019, o número dobrou. 

No primeiro plano, há uma pessoa com óculos de realidade aumentada engatinhando no chão e esticando o braço, como se quisesse alcançar alguma coisa. No fundo, há dois quadros na parede.
André Stefanini/Folhapress

Vão surgindo “lojas” que são como depósitos, onde você acessa um terminal de computador, escolhe o produto, paga e entrega a nota para um funcionário (algo entre balconista e carregador), que simplesmente pega a caixa de papelão e a entrega para você.

Uma espécie de Amazon, portanto, em que o cliente faz o trabalho do correio. 

Óbvio que tudo fica mais barato. O que fazer para manter as lojas de pé? Acho que começam a procurar o caminho das livrarias. 

Não há tanta cultura, na verdade, para que todas as lojas Pernambucanas se reinventem como centros culturais. A saída, imagino, é fazer com que o ato de ir às compras se transfigure em outra coisa.

Cada vez mais a publicidade usa o termo “experiência”. O carro x não é apenas mais rápido, maior, mais confortável. Vende-se a “experiência” de andar no carro x.

O consumo contemporâneo não pode mais oferecer simplesmente uma coisa que você leva para casa; tem de fazer da sua compra, de seu ato de consumo, um momento de lazer ou de emoção pré-fabricada. 
Para lembrar Ortega y Gasset, a mercadoria hoje é “a mercadoria e sua circunstância”. 

Possivelmente, o modelo disso tudo é o turismo. Nunca foi possível vender um pedaço do Coliseu; vende-se a oportunidade de estar na frente dele. Os navios de cruzeiro prolongam ao máximo o ato da viagem em si, em vez de simplesmente entregarem ao turista o lugar para onde ele vai.

No plano cultural, também muda o velho processo em que a arte era tratada como mercadoria. Compra-se uma música, é claro, tanto no velho CD quanto na “degustação” de um vinil, ou ainda pela assinatura de um site de streaming. Aí, estamos no campo da mercadoria.

Mas as pessoas procuram outra coisa —e vão a shows. O show de um cantor é uma “experiência”, e custa muito mais do que o disco em que o show foi inspirado.

Alguns museus seguem o sistema. Li, não me lembro mais onde, sobre uma “experiência Van Gogh”, em que se reproduzia virtualmente o célebre quarto com a cadeirinha de palha que o pintor retratou em Arles.

Acompanhe-se a coisa de uma “experiência gastronômica”, e logo inventarão um meio de você perder uma orelha provisoriamente.

Uma exposição sobre Leonardo da Vinci em Londres tinha menos quadros do que “experiências”, sensações em torno de um quadro específico. Projeta-se o entorno da igreja onde o quadro se situava originalmente. Faz-se a instalação das rochas e árvores do cenário representado na pintura. E assim por diante.

Não é ruim que isso esteja acontecendo. O antigo sistema de correr pelas paredes de um museu e depois comprar um ímã de geladeira na lojinha dá lugar a um modelo em que se disputa, não só o dinheiro, mas o tempo do espectador. 

Tempo de contemplação, quem sabe. Artistas contemporâneos propõem “experiências” que, depois, serão divulgadas pelas selfies e vídeos postados no Instagram. A obra em si, diz o crítico Scott Reyburn em “The Art Newspaper”, vê seu valor de mercado subir à medida que ganha “likes” e seguidores na internet.

O artista vende relíquias de uma experiência, ou o “original” de sua instalação, ou os direitos de sua performance, para um colecionador ou um museu. A coisa vendida se torna, assim, quase que o papel-moeda a simbolizar a “experiência” produzida. 

Experiência produzida, fabricada, proposta ou imposta para o turista-contemplador. A arte, ou o que sobrava dela, caminha assim para o mundo do “pós-consumo”. Termo enganoso, naturalmente, mas isso é tema para outro artigo.

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