Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Série 'Drácula' é espécie de luto pelos clássicos trash de 50 anos atrás

Num cenário marcado por Trump e pelo brexit, o destino do vampiro não deixa de ser instrutivo

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Dizem que não é certo julgar um livro pela capa, mas no caso das séries de TV eu acho que a coisa funciona.

Aquelas cenas iniciais, em que aparecem os nomes dos atores e outros créditos, são um bom indício da qualidade do que veremos a seguir.

Tinha muitas esperanças com “Drácula”, produção da BBC em três (longos) capítulos que está disponível na Netflix. 

Uma grande lápide no centro da ilustração com três cruzes de cada lado. A lápide tem uma asa de cada lado, as duas são semelhantes a asas de morcego. Há uma cruz desenhada na lápide e a inscrição "1897-2020"
André Stefanini/Folhapress

Seus autores, Mark Gattis e Steven Moffat, tinham feito uma ótima adaptação de Sherlock Holmes para os dias atuais, com Benedict Cumberbatch esbanjando sarcasmo e esquisitice no papel do arquidetetive.

Só que o dinamarquês Claes Bang, encarregado de reviver (?) o rei dos vampiros, não possui o encanto necessário. 

Representantes do público feminino discordam da minha opinião; ele está cotado para ser o novo James Bond. Achei-o cafona, além de heterossexual demais para as sugestões de “gayzice” inscritas no 
roteiro. Suas piadinhas e frases de duplo sentido poderiam também ser mais caprichadas.

As cenas iniciais da série já faziam temer uma decepção. Glóbulos vermelhos e órgãos humanos vistos de perto se tornaram um clichê; para variar a coisa, acrescentou-se uma  gigantesca mosca (sim, era preciso fugir do lugar-comum do morcego), com os olhões que conhecemos. Oh. Por cima, como daguerreótipos desbotados, surgem imagens das principais vítimas. O efeito é confuso, microscópico e sem foco.

A intenção, provavelmente, foi jogar com algum tipo de duplicidade temporal. Os glóbulos em close sugerem o ambiente científico de hoje; as fotos antigas nos levam a 1897, quando Bram Stoker publicou seu clássico romance.

O roteiro faz esse salto cronológico —brincando com as surpresas do velho conde, que sairá de um barco a vela para se deparar com telefones, helicópteros e aparelhos de TV. 

Os atores que representavam as vítimas de cem anos antes reaparecem no papel de seus descendentes, mais corajosos e hedonistas.

É o Drácula nos tempos do DNA —como se a hereditariedade fosse a forma científica da sobrevivência vampiresca. Obtém-se um corpo eterno, mas não inteiramente vivo, e destituído de alma.

Poderíamos pensar em clones, mas o tema não é explorado. Gattis e Moffat apostaram em outra forma de sobrevivência e reencarnação. 

A nova série quis ressuscitar a linguagem, o estilo, a decoração dos filmes de Christopher Lee, com todo o vermelho Technicolor das décadas de 1960 e 1970. 

A vantagem, nos dias atuais, é que os autores puderam exagerar no nojento, no macabro, no bizarro. Unhas saem dos dedos, olhos vazam secreções, cartilagens pingam.

Uma das poucas coisas legais dos filmes antigos, a meu ver, é que as pessoas atacadas pelo conde se tornavam também vampiros de pleno direito. Moças lindas ganhavam suas presas e partiam para
a perpetuação da espécie.

Com isso, Drácula ganhava um grande poder de sedução; fazer parte de sua trupe até que poderia ser um bom negócio. Você perde a alma, mas fica irresistível para sempre.

Ter a alma danada parece pouco hoje em dia. Era preciso tornar mais horrível o destino dos que cedessem aos dentes de Drácula. Recorreu-se ao filão, que já cansou um bocado, dos zumbis e dos mortos-vivos, com um toque de Dorian Gray.

A aparência supostamente charmosa de Drácula esconde, na verdade, um zumbizão decrépito; o horror dele aos espelhos se explica porque vê neles, como na história de Oscar Wilde, o retrato secular da sua podridão física e moral.

Há uma cena bonita no último episódio. Drácula e sua namorada se encontram num cemitério. O conde pede silêncio. Prestando atenção, é possível ouvir os lamentos dos que foram enterrados em vida; as batidas na tampa dos caixões, as unhas arranhando a madeira.

A angústia coletiva se apresenta com delicadeza —até o momento em que inventam de dar um susto bobo no espectador. 

Dizem que uma das etapas do luto é a de imitar os gestos e hábitos da pessoa que perdemos, como se pudéssemos revivê-la por osmose, espelhamento ou absorção.

Talvez a ideia ameaçadora do morto-vivo seja um meio de nos fazer desistir da tentativa. 

Numa espécie de luto de cinéfilos, a série atual quis imitar a autoconfiança acrítica dos clássicos trash de 50 anos atrás. Terminaram pondo em movimento um exército de zumbis. 

Num cenário marcado pelo “Make America Great Again” de Trump e sua contrapartida no brexit de uma Inglaterra exangue, o destino deste “Drácula” não deixa de ser instrutivo.

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