Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Coelho

Graças ao coronavírus, descubro mais uma oportunidade para chegar à sabedoria do nirvana

Atividades chatas também podem se transformar em práticas de meditação

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Se a coisa depender do autoisolamento, não devo pegar o coronavírus tão cedo.

Pratico-o há muito tempo, de forma quase integral; mesmo assim, não é fácil me acostumar com algumas coisas.

Para ouvir música sossegado na frente do computador, fones de ouvido são indispensáveis. Acontece que sou adepto do mouse e da impressora —e não confio na bateria do laptop.

Ilustração mostra um passo a passo de como lavar as mãos
André Stefanini/Folhapress

Eis que a combinação termina impondo um teste cotidiano à minha paciência. Os fios de cada aparelho se enrolam, por mais que eu tente segregá-los em linhas paralelas sobre a mesa.

Não ficam retos nunca. Atraem-se lascivamente, como cobras; escorregam até a tomada, penetram nos cadarços do sapato, trepam de volta pelo abajur, enleiam-se na haste dos óculos, alcançam meu pescoço, embrenham-se no cabelo, e compõem na minha cabeça alguma coisa entre a coroa de espinhos de Jesus Cristo e a máscara horrenda da Medusa.

Ganhará dinheiro quem inventar algum tipo de ligação refratária e antimagnética, que mantenha cada fio em sua trilha. Ah, você diz, mas já existem fones de ouvido sem fio. Engano: eles precisam ser carregados.

E, enquanto um par vai sendo carregado, com um fio, uso o outro par, que tem seu respectivo fio, perigosamente solto pela mesa.

O pior é nas viagens: tudo entra na mala e depois se transforma num ninho inextricável de jaracuçus.

Mas por que tanta irritação? Com o tempo, fui aprendendo. O erro é querer desfazer os nós com rapidez. Decretei, internamente, que separar os fios direitinho nada mais é do que uma excelente diversão.

Tudo depende da perspectiva que se adote. Um trecho famoso das “Aventuras de Tom Sawyer”, de Mark Twain (1835-1910), mostrava o protagonista, um garoto no sul dos Estados Unidos, encarregado de caiar um longo muro de tábuas. A tarefa era tediosa e cansativa.

Os amigos da rua aparecem para ver o que ele está fazendo. Ele diz que inventou um novo brinquedo —uma atividade divertidíssima, a melhor maneira de empregar o seu tempo num sábado de sol.

Tamanha é a propaganda que, no fim do capítulo, a criançada faz fila para ajudar Tom Sawyer e chega a pagar-lhe para continuar a caiação.

Numa histórica entrevista para a TV Bandeirantes, aí por 1977, Caetano Veloso disse que gostava de lavar louça: havia a espuma do detergente, a água escorrendo, o prato ficando limpo… Muita gente, na minha geração, convenceu-se de que era uma das atividades mais prazerosas do mundo.

Resolvi, assim, acreditar na mesma coisa com relação aos fios enrolados. Que sorte! Transformaram-se de novo no sistema intestinal de um morcego mumificado, numa orgia gótica de anelídeos suicidas, no novelo dos nervos necrosados de um vampiro.

Calmamente, docemente, entrego-me à meditação que inventei; descosturo, desenlaço, desviro, desafogo e libero tudo. Passo a passo. Ponto a ponto. Nó a nó.

O segredo é tornar qualquer coisa objeto de meditação.

Graças ao coronavírus, descubro mais uma oportunidade para chegar à sabedoria do nirvana.

Nunca liguei muito para lavar as mãos. Contrapondo-se à regra familiar, meu irmão mais velho argumentava, e eu lhe dava apoio, que desde a invenção do garfo e da faca não havia muito sentido em lavar as mãos antes do almoço e do jantar.

Tempo de rever o raciocínio. Arregaço então as mangas, acaricio o sabonete, canto “Parabéns para Você”, rezo a Ave Maria, começo de novo, alterno a água fria e a quente. Não estou mais lavando as mãos; dou banho nelas.

Se o hábito pegar, e se sobrevivermos todos ao coronavírus, quem sabe algo de bom resulte disso tudo. Sempre se disse que lavar as mãos era a melhor imunização contra a gripe —qualquer gripe. Nem por isso as pessoas deixaram de ficar regularmente gripadas.

Talvez nunca mais; talvez, como na malfadada profecia que se veiculava em 1914, esta seja “a gripe para acabar todas as gripes”.

Há ironias mais claras nesse caso. O vírus, que se espalha com um processo de globalização jamais visto, impõe agora o isolamento máximo de cada indivíduo.

É como se estivessem concentrados, no momento, dois aspectos opostos da vida contemporânea —a circulação intensa de pessoas e mercadorias, de um lado, e o fechamento de cada pessoa na sua bolha virtual.

“Globulização”, quem sabe: como nos velhos manuais de dialética, cada coisa se intensifica até se transformar no seu contrário.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.