Gente fina é outra coisa. Veja, por exemplo, a delicadeza e a cortesia que regem o mundo das corridas de cavalo. Um bilionário de fama internacional, fanático pela criação de puros-sangues, estava interessado em comprar o belíssimo Highland Glen, animal que pertencia à rainha Elizabeth da Inglaterra.
Ciente de que o cavalo tinha temperamento difícil, a rainha achou que seria pouco ético vendê-lo.
Gentilmente, ofereceu-o de presente ao bilionário. O qual, com perfeito “savoir-faire”, retribuiu mais tarde, enviando quatro excelentes potros para o haras de Sua Majestade.
O bilionário, que é um grande proprietário de terras no Reino Unido, passa agora por um período de estranhamento com a casa de Windsor.
Não mais será visto, com sua cartolinha preta, cara amarrada e barba de Zé do Caixão, no camarote especial da rainha nas competições turfísticas.
Trata-se do xeique Mohammed al Maktoum, vice-presidente e primeiro-ministro dos Emirados Árabes Unidos. É dono da Emirates, reputada companhia aérea, e de tudo o que você imaginar em Dubai, como aquele lindo hotel que parece um barco a vela, o Burj Al-Arab, e aquelas praias artificiais imitando o desenho de uma palmeira.
Aos 70 anos, o xeique Mohammed enfrenta algumas sérias acusações na Justiça britânica. Sequestrou duas próprias filhas, e não é impossível que venha a se vingar também de uma de suas mulheres, que fugiu faz pouco tempo do país.
A história, das mais odiosas, apareceu na Folha na semana passada, e vale relembrá-la enquanto ainda se comemora o Dia Internacional da Mulher.
Primeiro, foi a princesa Shamsa, que aos 19 anos aproveitou umas férias da família na Inglaterra para dar uma escapadela; estava passeando em Cambridge quando quatro homenzarrões a agarraram.
Provavelmente dopada, foi posta num helicóptero, mandada para a França e daí para Dubai.
Isso foi há 20 anos; Shamsa nunca mais foi vista.
A segunda filha do xeique, Latifa, também tentou a sorte. Primeiro, em 2002, quis cruzar a fronteira de seu pequeno país; não tinha a menor ideia de como se faz isso. Foi pega, posta numa cela escura, sem saber por quantos dias, e surrada regularmente.
Com o tempo, o xeique a perdoou. Tornou-se campeã de equitação e gostava de praticar kitesurfe. Sem dúvida, esses esportes lhe davam alguma sensação de liberdade.
Latifa acabou contatando em segredo um ex-espião francês, Hervé Jaubert. A fuga foi planejada longamente. O francês tinha um iate.
Uma amiga da princesa levou-a de carro até o porto.
Latifa gravou um vídeo comemorando sua libertação iminente. É possível encontrá-lo no site da BBC News. A jovem estava maravilhada: pela primeira vez na vida, podia se sentar no banco da frente do carro, enquanto a amiga dirige.
O iate zarpa de Dubai e se aproxima de Goa. Uma embarcação indiana aparece; marmanjos de metralhadora agarram a princesa Latifa e —num lance de cinismo genial—, afirmam que estão salvando a moça de seu “sequestrador” francês.
Como o xeique conseguiu achar a filha no iate? Os Emirados Árabes, informa a BBC, compraram tecnologia de espionagem israelense. Localizam seu celular, mesmo quando está desligado.
A indústria do turismo tem suas modas —e, enquanto o coronavírus toma conta da Europa, a publicidade em torno de Dubai continua a pleno vapor.
Nunca tive o menor interesse naquele shopping-center montado em cima de praias artificiais. Mesmo se
tivesse, evitaria. Nunca se sabe o que pode acontecer num país autocrático.
No ano de 2017, uma cidadã inglesa procurou a polícia de Dubai; tinha sido estuprada por um grupo de compatriotas seus, num hotel. Foi presa na hora: a lei local considera crime que uma mulher faça sexo fora do casamento.
O site Visit Dubai é um primor. A atriz Gwyneth Paltrow e outras duas amigas aparecem se divertindo num filmete publicitário. Uma jovem muçulmana de patins lhes propõe uma visita à discoteca. Zoe Saldana passeia de moto sozinha no deserto; a gasolina acaba, dois cavalheiros de barba a ajudam gentilmente.
O país quer se fazer de moderno. Mas a modernidade é apenas um luxo, um passaporte para os privilégios da elite —que não vive sem brutalidade, preconceito e violência. Não apenas em Dubai, as praias artificiais do ultraliberalismo se fantasiam em cima de abismos de opressão.
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