Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Descrição de chapéu internet

Filme 'O Dilema das Redes' traz tom moralista e estilo de programa religioso

O ciclo do documentário disponível na Netflix reproduz a lógica do pensamento evangélico: tentação-vício-ruína

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A pressão social foi grande, e terminei assistindo ao documentário "O Dilema das Redes", disponível na Netflix.

Poucas vezes tive tanta sensação de estar perdendo o meu tempo. Antes de falar do conteúdo, acho importante criticar a forma e a estética do filme.

Sabe aqueles anúncios de frigideira mágica, de spray antigordura ou de aspirador superpotente que apareciam na TV? Duravam uns dez ou 15 minutos, repetindo a mesma mensagem até a exaustão.

Quando tudo parecia estar terminando, o locutor começava de novo. "E tem mais! Com o novo Chup-O-Dent, suas gengivas ficarão estimuladas por mais tempo..." Depois de mostrar o número do telefone para você encomendar o produto, o anúncio dava uma paradinha e avisava que pelo mesmo preço você ganhava dois kits de reposição.

Ilustração mostra 3 pessoas olhando para o logo do Facebook assustadas
André Stefanini

Vinham novos depoimentos de donas de casa e outras demonstrações do mesmo prodígio --o ovo não gruda na frigideira, já sabemos, mas eis um teste com chiclete, com caramelo, com cola e, agora, com cimento: incrível! Nada gruda!

Em sua crítica ao poder manipulador do Facebook, do Instagram e assemelhados, "O Dilema das Redes" segue bastante esse modelo.

Vários entrevistados, em geral ex-executivos dessas empresas ou altos especialistas em engenharia da informação, repetem a mesma coisa. O documentário poderia ter uma hora a mais ou a menos, e não faria diferença.

A mensagem básica é: as redes sociais vendem para os anunciantes um produto, a saber, a atenção do usuário. Então, caro amigo, você pensa que ficar clicando no Instagram é legal? Você não sabe que eles estão interessados em viciar, de modo a atrair para gastar dinheiro nas coisas que (eles sabem) você está predisposto a consumir.

Não é propriamente uma novidade. Mas tudo é tratado como se fosse uma denúncia espantosa, que precisa ser martelada dezenas de vezes até entrar na cabeça do espectador.

Há frases retóricas em quantidade, enunciadas por especialistas soleníssimos, com a mesma insistência com que se proclamava a absoluta novidade de um processador de alimentos "revolucionário" ou de um aparelho emagrecedor "com resultados imediatos".

É como se os autores do documentário fossem representantes do velho marketing televisivo, desesperados com a eficiência terrível dos algoritmos do Facebook.

Além dos depoimentos repetitivos, há cenas de "dramatização" capazes de envergonhar o pior diretor de telenovela bíblica. Uma "típica" família americana se vê reduzida ao silêncio e ao isolamento dado seu vício no celular. Um adolescente é manipulado, sendo exposto a sites cada vez mais radicais —que desembocam em ofertas de lojas especializadas em armas.

Do outro lado, três atores encarnam os manipuladores demoníacos, que anotam o tempo em que a vítima está longe do celular e produzem notificações para chamar sua atenção.

O ciclo, claramente, reproduz a lógica do pensamento evangélico: tentação-vício-ruína. Famílias destruídas, nações em guerra, suicídios em massa.

Há uma dose de verdade nisso, claro. Se você só tem acesso a notícias que reforçam suas convicções, acontece aquilo que estamos vendo: radicalização política, perda do senso de realidade, bolhas de opinião impermeáveis.

As coisas não são tão simples. Ditadores se beneficiam da internet (o caso de Myanmar, citado no filme, é impressionante, e temos o bolsonarismo aqui). Mas os protestos pela democracia em Hong Kong também ganharam força.

É curioso que "O Dilema das Redes" mostre, como exemplo do "caos" criado pela internet, cenas de protestos violentos contra o racismo da polícia americana. Puxa, que chato esse clima de "polarização"...! Prefiro achar que o erro está na polícia, e não nas redes sociais.

Facebook e companhia são máquinas de espalhar fake news, e isso tem de ser resolvido. Será resolvido, acho, porque até Darwin ajuda a desacreditar grupos antivacina, antiquarentena e pró-terra plana.

Há cem anos, os jornais espalhavam notícias falsas para levar as pessoas à guerra. Na segunda metade do século 20, a televisão da Alemanha Oriental ou da Romênia impunha sua doutrinação sem nenhuma concorrência.

"O Dilema das Redes" ignora o fato de que a história é cheia de contradições e de mudanças. É moralista e "evangélico" também nisso: o apocalipse está próximo, e só se salvará quem renunciar ao vício. Santa inocência, Batman.

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