Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

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Descrição de chapéu jornalismo mídia

Compromisso com a democracia supera a necessidade de um pluralismo de hospício

O fenômeno da notícia interminável e do comentário repetitivo não é culpa de ninguém

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Mais do que nunca, estou seguindo a quarentena —e acabo vendo mais televisão do que gostaria. Ligo o canal de notícias, aparece um assunto qualquer. Não digo a Covid, outra coisa. Digamos, a eleição para presidente da Câmara.

Toca o interfone, vou buscar a encomenda. O elevador demora. Aparece, mas tem gente. Espero que desça e volte para me buscar. Pego minhas compras. Vou até a cozinha para passar álcool no pacote.

A televisão ficou ligada. O assunto continua o mesmo: eleição para presidente da Câmara dos Deputados. Um comentarista se estende sobre o caso, outro aparece para concordar.

Faço a mesa, esquento a comida, esqueço o guardanapo, vou buscar, volto e janto. O 
terceiro comentarista começa a fazer suas considerações. 
Sobre a eleição na Câmara.

Levo os pratos para lavar, como uma fruta, vejo que o detergente está acabando, procuro outro, abro a torneira, passo a esponja, ponho tudo no secador, enxugo as mãos, volto à sala, e o canal de notícias ainda está falando da eleição para presidente da Câmara.

De duas, uma: ou estou jantando muito depressa e já adquiri prática de virtuose nas tarefas de cozinha ou o noticiário está demorando demais.

Os rostos conhecidos se dividem num telão. O apresentador, coitado, está sempre de pé. Lembro de já tê-lo visto coordenando a aparição de seis, de oito comentaristas ao mesmo tempo. É tanto tempo que, às vezes, cai a internet de um deles antes mesmo de chegar sua hora de intervir.

O fenômeno da notícia interminável e do comentário repetitivo não é culpa de ninguém —embora soluções mais interessantes pudessem ser pensadas. Acontece que canais de jornalismo não conseguem preencher 24 horas por dia de programação. Ou ficam repetindo, de meia em meia hora, as mesmas manchetes, ou então precisam de comentaristas para encher o tempo entre uma notícia e outra.

Por vezes, sem dúvida, os comentários são informativos e especializados. Mas não há muito o que extrair, exceto 
especulações, de manobras partidárias e arranjos nos 
bastidores de Brasília. E como reagir com originalidade diante de um feminicídio, do assassinato de um negro, do último absurdo de Bolsonaro?

Sem dúvida, os comentaristas poderiam divergir um pouco mais um do outro. A concordância é tediosa. Mas, hoje em dia, se a Globo apostasse na “diversidade de opiniões”, teria de dar voz a uns 30% de fascistas e mentirosos —e o compromisso com a democracia e com a verdade, a meu ver, supera a necessidade de um pluralismo de hospício.

Seja como for, a questão não é termos notícia de menos. É que há tempo demais e 
excesso de velocidade nas comunicações —tanto na TV, como na internet e no próprio jornalismo impresso. Por acaso, estava lendo as “Cartas de Inglaterra”, reunião dos artigos escritos por Eça de Queiroz para o jornal brasileiro Gazeta de Notícias.

Ilustração de quatro bustos de uma pessoa com cabelo curto e terno sem rosto. Em cima de cada um, há mais três cabeças iguais que se repetem diminuindo concentricamente. Um balão de fala sai das quatro pessoas e se repetem concentricamente também
André Stefanini/Folhapress

Não são crônicas. É jornalismo mesmo, e extraordinário. A surpresa vem logo no primeiro texto, falando de uma tentativa inglesa de invadir o Afeganistão. Eça de Queiroz é cético: não percebem que é tempo perdido? Trinta anos antes, em 1847, faziam a mesma coisa —e saíram humilhados.

Em cinco ou dez páginas, ele explica a situação da Irlanda, o nacionalismo egípcio, as hostilidades entre Rússia e Turquia.

Claro, o estilo literário conta. Mas ele tinha outra vantagem: o tempo. Como as notícias não chegavam de hora em hora, e como ele só precisava escrever de quando e quando, surgia uma vantagem narrativa.

É que você pode contar uma história com começo, meio e fim. Parecia que uma coisa ia acontecer, fulano queria isso, desistiu da ideia, outro país se agita, os planos mudam, uma cidade oriental é invadida e retomada, a guerra termina.

Os fatos ganham sentido quando não se reduzem a migalhas —e nada mais parecido com uma migalha que outra migalha. Claro, esse era o jornalismo de quase 150 anos atrás. As revistas semanais talvez pudessem recuperar algo dessa “narratividade” —mas investiram, como todo mundo, em reportagem e comentário.

Morreu em julho passado, com quase cem anos, Gilles Lapouge, o correspondente na França de O Estado de S. Paulo. Foi dos últimos a deter o segredo de “contar uma história”, com alguns poucos passos de distância temporal dos fatos.

Em geral, estamos intoxicados pelo presente imediato. Os fatos, em sua brutalidade surda e muda, se sucedem sem variação. Tentamos 
dominá-los por meio do “comentário” —que, infelizmente, varia menos ainda.

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