Marcelo Coelho

Mestre em sociologia pela USP, é autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Marcelo Coelho
Descrição de chapéu Natal

O que se passa na cabeça de quem se embola para fazer compras de Natal?

Acho engraçado que, no meio da loucura toda, o governo não tenha recomendado o puro poder da fé

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Vejo as fotos da multidão sem máscara que se reúne na 25 de Março, e minha reação imediata é o desprezo. Que idiotas, que loucos. Será merecido se terminarem contaminados.

Mas meu olhar é distante. Não conheço pessoalmente nenhum desses consumidores, não sei o que lhes passa pela cabeça. Talvez nem eles saibam direito o que estão fazendo.

Ilustração de várias pessoas andando, vistas de cima
André Stefanini

A ação, muitas vezes, se faz sem pensamento. A prática de deliberar racionalmente, e de seguir o que foi decidido, não é das mais comuns.

E é a partir daí que tento entender um comportamento tão irresponsável. “Sou humano”, dizia o velho Terêncio, “e nada do que é humano me é estranho”.

Olho para mim mesmo, e vejo a quantidade de vezes em que também fiz o contrário do que seria certo.

É a lógica do “quer saber? Que se dane”. Diante de uma pizza —que alguém pediu, não fui eu!—, esqueço o colesterol e a balança. Mais um pedaço? “Gronch, gronch”, diz o suíno escondido dentro de mim. “Quer saber? Que se dane.”

Um amigo às vezes chegava na minha casa com a notícia. “Esta noite pretendo ficar inteiramente embriagado.” Era uma decisão. Mas não era uma decisão racional. A decisão, justamente, era a de não ser racional.

Duas ou três horas depois, ele entortava uma última frase. “Estou bêbado… irremediavelmente bêbado…” E caía desabado no sofá.

O arrependimento talvez viesse depois. Naquele momento, constatar a própria bebedeira era uma espécie de triunfo.

Ele se observava como a um estranho; registrava, de longe, a própria sobrevivência. Sentia o prazer de ver a si mesmo como a um outro —como uma coisa, submetida a uma força que era maior do que ele.

Deixar-se levar pela gula, pelo sono, pela preguiça, talvez seja muitas vezes um ato de reequilíbrio. O superego cansa. O animal interno se revolta. É até saudável; mas é um erro, sem dúvida. Depois de uma folga, o superego volta com mais força.

Há também o auto-engano. Completamente aturdido pelo álcool, o sujeito pega a chave do carro; “não, não, estou bem… chego em casa numa boa…”.

“Não vai acontecer nada”: assim pensa o comprador da 25 de Março. Muitos caminhos podem conduzi-lo a essa estranha certeza.

Primeiro, não é bem certeza. Em muitos casos, ele sabe que pode se contaminar. Mas a frase “não vai acontecer nada” funciona quase como uma fórmula mágica, uma reza, uma mandinga, capaz de por si mesma afastar o vírus.

Outra justificativa para ir às compras é a de dizer “só dessa vez”. Dá para entender. A pessoa está confinada por semanas; já fez seu sacrifício. Por que não teria “o direito” de passear um pouco?

A mente “sensata” pode criar armadilhas desse tipo. “Estou tomando as precauções contra o vírus, claro… mas sem exagerar, sem fanatismo…” Tudo com moderação! Ele sai de casa, e quando vê está no meio de milhares de outros moderados.

Volta; lava as mãos, abre os pacotes. E, veja só, não aconteceu nada! Alguns dias se passam; ele não se contaminou.

O raciocínio enganoso se constrói: “posso perfeitamente ir lá de novo!”.

Se for mais sensato ainda, fará um exame de Covid. “Ha, ha, deu negativo!” É como se o resultado fosse um prêmio por ter tido o cuidado de ir ao laboratório.

Vendo esse comportamento de fora, eu diria que é como se essa pessoa estivesse tentando se contaminar. Daqui a uma semana, ou um mês, tenta o exame novamente.

Claro que há os totalmente ignorantes. Aqueles que não acreditam em pesquisas de opinião “porque nunca foram entrevistados”. Ou os que, ainda, estão no surto bolsonarista.

Não acreditam na vacina e nas estatísticas, do mesmo modo que não acreditam na Declaração dos Direitos do Homem e na democracia: é a mentalidade pré-iluminista.

Acho engraçado que, no meio da loucura toda, o governo não tenha recomendado o puro poder da fé. Onde estão os exorcistas? Que tal expulsar o vírus aos gritos, de Bíblia em punho, num programa de TV?

Na mentalidade bolsonarista, seria uma demonstração de medo.

Há outras possibilidades. Muita gente não tem como comprar presentes online. O correio e as empresas de entrega se recusam a entrar em alguns bairros, dado o risco de assalto.

Para muitas pessoas, sair de casa todo dia para trabalhar já é enfrentar o risco de uma bala perdida na cabeça. O vírus pode até parecer mais camarada.

A burrice está em toda parte. Meu impulso é desprezá-la. Mas, para quem se acha inteligente, o maior dever é tentar compreendê-la um pouco.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.